1ª Leitura: Is 5,1-7
Sl 79
2ª Leitura: Fl 4,6-9
Evangelho: Mt 21,33-43
A pedra rejeitada, tornou-se a pedra angular…
Nesse domingo, dia do Senhor, a Liturgia da Palavra que nos é proposta contém a leitura contínua da carta de São Paulo aos Filipenses. Antes de olhar a primeira leitura e o evangelho, que estão intimamente conectados, podemos nos deter, ainda que brevemente, sobre esta segunda leitura. Já quase no final da sua carta, Paulo começa a dar seus últimos conselhos aos cristãos de Filipos. Saltam aos nossos olhos os vv. 6-7: 6Não vos inquieteis com coisa alguma, mas apresentai as vossas necessidades a Deus, em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças. 7E a paz de Deus, que ultrapassa todo o entendimento, guardará os vossos corações e pensamentos em Cristo Jesus.
Estes versículos trazem uma ordem e uma promessa. A ordem é dúplice: não “inquietar-se” com nada; “apresentar/fazer conhecer” a Deus as nossas necessidades, por meio de orações e súplicas, com “ações de graças” (aqui Paulo utiliza o termo grego eucharistias). A promessa vem no v. 7: seremos “guardados” pela paz de Deus em nossos corações e pensamentos.[1]
Sobretudo em tempos difíceis, como é doce ouvir essa Palavra do Senhor. Nada deve nos inquietar. O verbo utilizado por Paulo é o verbo merimnao, que aparece cerca de 19 vezes no NT. É o mesmo verbo que aparece em Mt 6,25.27.28.31.34, repetidas vezes, no trecho onde Jesus nos convida a nos abandonarmos à providência, na certeza de que Deus cuida de nós. Não se trata, sem dúvida alguma, de um descompromisso com a realidade, como o texto bíblico nos sugerisse uma alienação. Trata-se de confiar em Deus, que está acima de tudo e governa tudo, por isso o apóstolo acrescenta a expressão “com ações de graças” (meta eucaristias), ou seja, não vos inquieteis com nada, apresentai a Deus em oração e súplica as vossas necessidades, com “ações de graças”, confiando que Deus já vos tem ouvido e vem ao vosso encontro.
Somente quando passamos a confiar absolutamente em Deus, que governa e dirige a história, que governa e dirige a nossa vida, é que a sua paz pode reinar em nós. Paulo nos sugere, assim uma troca: dar a Deus a nossa inquietação e receber dele a sua paz, a qual “supera todo entendimento” (Fl 4,7). É esta paz que “guardará” nossos corações e pensamentos. O verbo “guardar” (em grego phroureo) é utilizado muitas vezes em sentido militar: “montar guarda”. Não seremos guardados pelas nossas preocupações, mas sim pela “paz de Deus”, que nasce naturalmente em nós quando passamos a confiar nele de todo o coração.
Depois de explorarmos um pouco as riquezas desta segunda leitura, podemos nos debruçar agora sobre a primeira leitura e o Evangelho deste domingo.
O trecho do evangelho que hoje ouvimos está na quinta parte do Evangelho de Mateus, onde Jesus começa a falar sobre o Reino dos Céus. Mateus está narrando o ministério de Jesus na Judéia e em Jerusalém. Jesus está no Templo e conta esta parábola diante dos sumos-sacerdotes, dos mestres da Lei e dos fariseus. Esta parábola tem o mesmo pano de fundo da que ouvimos domingo passado, e trata da entrega do Reino dos Céus a um povo que realmente produza frutos, uma vez que os israelitas – primeiros, mas não únicos – destinatários da salvação e da promessa do Pai, não acolheram o Cristo, o Messias Salvador.
Jesus ilustra aqui a história do povo escolhido com a parábola da vinha e dos vinhateiros. A imagem da vinha para representar o povo de Israel é muito cara ao Antigo Testamento e aparece nos profetas (cf. Jr 2,21; Ez 15,1-8; Is 5,1-7). Sobretudo, poderíamos destacar a imagem que hoje nos é apresentada pela primeira leitura, este trecho do capítulo 5 de Isaías. Aqui o profeta canta para o “seu amado” o cântico da vinha de um amigo dele. Neste cântico, o amigo do profeta é o próprio Deus e a vinha o povo de Israel.
O profeta descreve então todos os cuidados que Deus teve para com o povo escolhido: “Cercou-a, limpou-a de pedras, plantou videiras escolhidas, edificou uma torre no meio e construiu um lagar.” Todavia, a videira produziu uvas selvagens. O povo de Israel depois de ter sido tirado por Deus do Egito, da terra da escravidão, e ter sido plantado na Terra Prometida, terra onde corre leite e mel[2], deveria produzir bons frutos, mas produziu frutos ruins: a idolatria, a prostituição com os falsos deuses, a confiança maior no poder estrangeiro do que no Deus que os havia tirado com mão forte da casa da escravidão. Sendo assim, diz o próprio Deus no final da parábola, a vinha será abandonada à sua própria sorte, será pisoteada, porque Deus vai remover a sua cerca, e secará, porque Deus não lhe mandará mais as chuvas benfazejas. O Salmo responsorial, por sua vez, é uma súplica, para que Deus visite seu povo, sua vinha: Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a! (Sl 79,15)
Tendo por base este trecho do profeta Isaías, Jesus conta, então, a parábola dos vinhateiros homicidas. Jesus vai demonstrar nessa parábola, que essa fúria de Deus pintada pelo profeta Isaías no cântico da vinha, na verdade foi permeada por muita misericórdia, porque Deus, ao longo da história da salvação, embora tenha permitido que o seu povo escolhido sofresse as consequências do pecado indo e vindo dos dois exílios, nunca os abandonou à própria sorte e sempre esperou pacientemente pelos seus frutos, enviando seus servos, os profetas, que tinham como missão recolher algum fruto da videira do Senhor.
Diz Jesus nesta parábola, que os vinhateiros, além de não entregarem aos servos do dono da vinha os frutos devidos, ainda espancaram e mataram estes. É a imagem clara dos profetas, enviados por Deus ao povo escolhido para ali recolher algum fruto de conversão, mas estes profetas foram perseguidos e mortos. Por fim, o Pai, numa explosão de misericórdia, enviou o seu próprio Filho, pensando: “Ao meu Filho eles vão respeitar”. Os vinhateiros não somente não deram ouvidos ao Filho, mas confabularam entre si e resolveram matar o Filho fora da vinha a fim de ficarem eles mesmos com a vinha que era de seu patrão. Jesus pergunta então aos sumos-sacerdotes e aos anciãos do povo o que o patrão, o que esse pai deveria fazer com os vinhateiros e estes respondem, dando contra si próprios a sentença de condenação, de modo semelhante ao que vimos no domingo passado, quando o Senhor pede que os seus ouvintes concluam qual dos dois filhos fez a vontade do Pai: “Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo.” (cf. Mt 21,41).
Jesus se coloca no centro dessa parábola. Ele é o Filho enviado pelo Pai, a fim de que o povo escolhido produza algum fruto. Mas, Jesus vai ser morto fora de Jerusalém, fora da vinha. Sua morte, longe de ser o fim, é na verdade, o grande começo, é o centro de tudo, porque pela sua morte nos veio a salvação. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto vem do Senhor, e é maravilha aos nossos olhos.”[3] Com estes versículos do Salmo 118 Jesus explica o mistério da sua morte. Rejeitado pelos construtores e lançado fora, Ele se torna a pedra principal, ou seja, aquela que dá sustentação a todo o edifício e, sem a qual, é impossível que as outras pedras fiquem unidas e firmes.
Morrendo fora de Jerusalém Jesus põe termo aos sacrifícios antigos, porque Ele se fez o nosso sacrifício de expiação, único e definitivo. Morrendo para nos salvar Jesus nos manifesta o amor infinito do Pai por nós como nos diz São João: “Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele.”[4]
Jesus dá desfecho a parábola dizendo que, já que os vinhateiros, ou seja, o povo de Israel e seus guias e mestres, não acolheram o Filho, o Messias enviado pelo Pai, a vinha, ou seja, o Reino de Deus, lhes será tirado e será entregue a um povo que produza frutos: aos pagãos e a todos aqueles que aderirem ao Senhor pela fé, porque como nos diz São Paulo: “De sorte que não há distinção entre judeu e grego, pois ele é Senhor de todos, rico para todos os que o invocam.”[5] e ainda São João: “Quem nele crê não é julgado; quem não crê, já está julgado, porque não creu no Nome do Filho único de Deus.”[6]
Os sumos sacerdotes, os fariseus e os mestres da Lei procuram, a partir de então, matar Jesus, porque eles entenderam que era deles que Jesus estava falando: “Ouvindo estas palavras, os altos funcionários do templo e os fariseus entenderam que ele se referia a eles e procuravam capturá-lo, mas tinham medo da multidão que o considerava um profeta.”[7]
Jesus anuncia aqui o mistério da Igreja, novo povo de Deus, constituído a partir do mistério da sua Páscoa, que recebe a missão de produzir frutos, de ser guardiã dos mistérios do Reino. A este povo qualquer um pode pertencer, desde que preste sua adesão a Cristo por meio da fé, e uma fé que não seja estéril, mas que produza frutos de justiça.
Nós somos esse povo, povo escolhido de Deus, povo nascido da Páscoa do Cristo, nosso Senhor e Deus. Devemos nos cuidar, para que a nossa adesão a Cristo não seja estéril e vazia, para que a nossa fé não seja simplesmente como palavras lançadas ao vento. Devemos produzir frutos de justiça que condigam com a fé que professamos. É a isto que nos exorta hoje o grande Apóstolo dos Gentios, São Paulo, no trecho final da segunda leitura de hoje.
Agradeçamos ao Senhor hoje nesta Eucaristia por sermos este novo povo, esta nova vinha escolhida, plantada e cuidada pelo nosso Deus de amor. Peçamos hoje nesta Eucaristia, a graça de sermos uma vinha que produza frutos para Deus; peçamos que apesar das nossas fraquezas e apesar das uvas selvagens que tantas vezes nascem em nós, auxiliados pelo Espírito Divino, possamos produzir boas uvas para Deus. Peçamos com o salmista: “Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a! Foi a vossa mão direita que a plantou; protegei-a, e ao rebento que firmastes! E nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus! Dai-nos vida, e louvaremos vosso nome! Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo, e sobre nós iluminar a vossa face! Se voltardes para nós, seremos salvos!”[8]
[1] Algumas variantes do texto grego trazem “corpos”, ou seja, seremos guardados em nossos “corações e corpos” pelo Senhor.
[2] cf. Dt 31,20
[3] Sl 118 (117), 22-23
[4] cf. Jo 3,16-17
[5] cf. Rm 10,12
[6] cf. Jo 3,18
[7] cf. Mt 21,45-46
[8] cf. Sl 79, 15-16.19-20