O ano vai chegando ao fim e nos incita a um retrospecto… Ao fazer tal revisão em seu contexto próprio, o Apóstolo escrevia: “terminei a minha carreira, guardei a fé” (2Tm 4,7).
Guardei a fé… Estas palavras têm sentido enfático. Significam, de certo modo, uma vitória. Com efeito, a fé é a adesão a Deus que se revela ao homem por palavras e feitos. A palavra de Deus é vida segundo o Apóstolo; é portadora de saúde espiritual… Quem percorre as epístolas pastorais (1/2Tm, Tt) não pode deixar de ficar impressionado pela frequência com que ocorrem a expressão hygiainousa didaskalía (doutrina sadia) e semelhantes (cf. 1Tm 1,10; 6,3; 2Tm 1,13; Tt 1,9.13…). São Paulo usa a locução palavra dasalvação (At 13,26); São João, palavra da vida (1Jo 1,1).
– No tempo do Apóstolo, como em outras épocas, serpeavam heresias, hairéseis, isto é, doutrinas seletas que mutilavam e deterioravam o patrimônio da fé; ora o Apóstolo não hesita em chamá-las gangraina, gangrena (2Tm 2,17); esta é algo de pútrido que se alastra e vai extinguindo a vida; o mesmo autor sagrado compara as heresias à doença, nosos(1Tm 6,4), à cauterização da consciência mediante o ferro em brasa, que se opõe à saúde e à vida (cf. 1Tm 4,2).
É a consciência do valor capital das verdades da fé que leva os cristãos a respeitá-las ciosamente. Elas vêm de Deus; podem ser ilustradas pela razão humana, embora esta não as abarque plenamente; jamais podem ser tratadas como verdades filosóficas, cujas únicas credenciais são a evidência maior ou menor com que se imponham à razão; posso retocar a meu modo o sistema de qualquer filósofo, pois estou igualmente credenciado pela razão para propor-lhe meus retoques. O mesmo, porém, não ocorre com as verdades reveladas por Deus; compete ao cristão aprofundá-las, sim, todavia guardando absoluta fidelidade ao significado original. O cristão sabe outrossim que qualquer desvio infligido a tais proposições não tem consequências apenas no plano acadêmico, mas repercute no da vida do povo de Deus, que pode ser assim afetada por doença e grangrena!
“Guardei a fé…” Isto quer dizer também: soube corajosamente colocar minha razão a serviço da palavra que às vezes é cruz, escândalo e loucura, mas que, em última instância, vem a ser fator de vida e plenitude.
“Guardei a fé…” Neste fim de ano, possa a Igreja dizê-lo em cada um dos seus fiéis!
Pe. Estêvão Bettencourt, OSB
Texto publicado na Revista Pergunte e Responderemos nº 265, Dezembro/1982.