Dt 4,32-34.39-40
Sl 32 (33)
Rm 8,14-17
Mt 28,16-20
Transborda em toda a terra a sua graça (Sl 32,5)
Celebramos hoje a Solenidade da Santíssima Trindade. Esta é uma solenidade didática, ou seja, nela não celebramos um dos “mistérios” da vida do Cristo, mas celebramos uma verdade da nossa fé: Cremos na Trindade! Aqui me vem à mente, as palavras do assim chamado “Credo de Atanásio”[1], um texto que já foi, no passado, utilizado na liturgia por ocasião da Solenidade que hoje celebramos, e que resume de modo magnífico a fé trinitária: “A fé católica consiste em adorar um só Deus em três Pessoas e três Pessoas em um só Deus. Sem confundir as Pessoas nem separar a substância. Porque uma só é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Mas uma só é a divindade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, igual a glória e coeterna a majestade.”
As leituras bíblicas desta solenidade nos ajudam a penetrar nesse mistério. A primeira leitura é um trecho do livro do Deuteronômio. Neste trecho Israel é chamado a olhar para o passado e a reconhecer a beleza de ter sido escolhido por Deus: “Terá jamais algum Deus vindo escolher para si um povo entre as nações?” (cf. Dt 4,34) Diante do mistério desta escolha, Israel deve “reconhecer” e “colocar sobre o coração” que o Senhor é Deus, e que não há outro além dele (cf. Dt 4,39).[2] Além disso, Israel deve comprometer-se com Deus: “Guarda suas leis e seus mandamentos que hoje te prescrevo” (cf. Dt 4,40).
Em grande ação de graças, o Salmo 32 (33) proclama “feliz” o povo que o Senhor escolheu por sua herança. O termo hebraico que aqui se traduz como “feliz” é o termo ’ashrê. A LXX o traduziu como makários. Mais que “feliz”, este termo significa “bendito/abençoado/bem-aventurado”. É um termo técnico para se introduzir uma “bênção”.[3] Este refrão, tomado do v. 12, levava o israelita a proclamar sobre si a bênção de ter sido escolhido como um povo preferido, amado por Deus, a quem Ele quis revelar-se em primeiro lugar.
Cantado hoje em nossas liturgias, o Salmo nos leva a proclamar também sobre nós essa bem-aventurança. Todo aquele que se abre à fé é hoje “bem-aventurado”, porque passa a fazer parte, pela fé e pelo batismo, do povo que o Senhor escolheu por sua herança.
Nós nos proclamamos “bem-aventurados” porque Deus quis revelar-se a nós. Paulatinamente, na história da salvação, Deus nos foi revelando seu rosto amoroso. Primeiro, manifestou-se como o Pai, Criador de todas as coisas. Na plenitude dos tempos, manifestou-nos o rosto do seu Filho muito amado que, subindo ao Pai, de lá nos enviou o Espírito da Verdade.
Lendo este Sl 32(33),6 à luz do NT, percebemos nele uma insinuação da Trindade. De fato, tal versículo afirma: “O céu foi feito com a palavra de YHWH, e seu exército com o sopro de sua boca”. Neste versículo aparecem os termos dabar (palavra) e rûah (sopro/vento). O termo rûah (sopro/vento) aparece em Gn 1,2, quando o autor sagrado afirma que “um vento de Deus (ou, o ‘espírito de Deus’) pairava sobre as águas”. O termo dabar, por sua vez, é um termo recorrente no AT. Sobretudo, merece destaque o Sl 118 (119), que constitui um grande elogio à Palavra Divina. Em Gn 1 não encontramos o termo dabar, mas a expressão recorrente “Deus disse” nos faz perceber que Deus criou tudo por meio da sua “palavra”, do seu dabar.
Santo Agostinho, lendo este versículo em chave trinitária, afirma: O Verbo é certamente Filho de Deus, e o Espírito de sua boca é o Espírito Santo. Pelo Espírito de sua boca se firmaram os céus, e do Verbo do Senhor lhes vem toda a fortaleza. Isto é a obra do Filho e do Espírito Santo. Acaso sem o Pai? Quem, pois, obra através de seu Verbo e de seu Espírito, senão aquele de quem é o Verbo e o Espírito? Esta Trindade é, portanto, um só Deus. A este adora quem sabe adorar, e a ele encontra em toda a parte quem se converter.[4]
As demais leituras, o Evangelho – coração de toda a liturgia da Palavra, e o trecho da carta aos Romanos proclamado como segunda leitura – nos levam a contemplar de modo pleno o nosso Deus Uno e Trino.
No Evangelho é o próprio Cristo quem nos anuncia esse mistério. Ele envia os seus discípulos e manda que eles batizem em “nome” do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Desde tempos antigos, o uso uma única vez da expressão “em nome” foi visto como apontando para a unidade da substância divina. Não são três deuses, mas um só Deus. Por outro lado, as expressões Pai, Filho e Espírito Santo, fizeram com que desde o início se percebesse que Jesus nos revelava algo totalmente novo a respeito da natureza de Deus: ele não é somente Uno, é também trino.
Um só Deus, em três pessoas realmente distintas. Um grande mistério de comunhão e de amor. ‘Mistério de comunhão’, porque não existe comunhão mais perfeita que esta vivida no interior da vida trinitária. ‘Mistério de amor’, porque somente contemplando o modo de amar da Trindade é que aprendemos, também, o que é o amor. A Trindade ama doando-se. O Pai se doa num movimento eterno de amor, gerando seu Verbo e enviando-o depois ao mundo. O Filho nos deu, no alto da cruz, o mais vivo exemplo de amor e doação, morrendo por nós e submetendo-se em tudo à vontade do Pai. O Espírito, por sua vez, desde a criação não cessa de ser derramado sobre nós. Ele estava no início de tudo, pairando sobre as águas. Depois guiou os patriarcas e os profetas. No irrompimento dos últimos tempos, ele veio em Pentecostes, como línguas de fogo e, desde então, não cessou jamais de se derramar sobre a Igreja, pois em toda ação verdadeiramente eclesial existe um Pentecostes, sobretudo e de modo particular, na celebração da liturgia.
Falando da filiação divina que recebemos em Cristo, Paulo na segunda leitura nos aponta, mais uma vez, o mistério da Trindade. Deixando-nos conduzir pelo Espírito, somos “filhos de Deus”, “filhos do Pai”. Pelo Espírito que recebemos, e que nos faz chamar Deus de Pai, tornamo-nos co-herdeiros de Cristo, a fim de sermos glorificados com Ele. Que maravilha observarmos esse movimento da divina Trindade em nossa vida de fé. O Pai nos envia o Espírito, que nos torna uma só coisa com o Cristo, seu Filho amado. Assim, quando o Pai nos olha, vê em nós a face do seu Cristo e transborda de amor.
Que abramos o nosso coração, a fim de que a Trindade que mora em nós desde o nosso Batismo, nos leve a crescer no conhecimento e na contemplação da beleza que é a nossa fé.
[1] Também chamado “Quicumque”.
[2] Aparecem aqui os verbos da’at (conhecer/reconhecer) e o verbo shuv (voltar). Na forma em que se apresenta no texto, o verbo shuv pode se entendido como “colocar de novo alguma coisa sobre”, por isso o sentido das traduções “medita/grava” em teu coração.
[3] Koheler & Baumgartner. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Vol I, p. 100.
[4] Santo Agostinho. Comentário aos Salmos. Salmo 32,5. In: Santo Agostinho. Comentário aos Salmos. Vol. 9/1 [Coleção Patrística]. São Paulo, Paulus, 20052, pp. 399-400.