Gn 3,9-15.20
Sl 97
Ef 1,3-6.11-12
Lc 1,26-38
Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!
A Igreja celebra hoje a Solenidade da Imaculada Conceição. A primeira leitura nos recorda o drama do pecado original. O homem não obedece a Deus que lhe havia ordenado não comer da árvore do bem e do mal (cf. Gn 2,16-17). A desobediência primeira causa uma tríplice ruptura: entre o homem e Deus; o homem e seus semelhantes; o homem e a natureza. Tal ruptura se pode ver ao longo dos vv. 9-13: Adão se esconde de Deus, culpa a mulher pela própria transgressão e, por fim, a serpente é condenada como “maldita” entre todos os animais domésticos.
A tradição judaica e a cristã reconheceram na serpente um símbolo do mal, do demônio. Foi por instigação do diabo que os primeiros pais pecaram no jardim. As consequências dessa desobediência primeira passaram para toda a humanidade que deles descende. Assim, não somente Adão e Eva, mas toda a humanidade ficou mergulhada no drama do pecado.
O mesmo texto do Gênesis, todavia, traz já uma resposta de Deus para essa situação caótica. Deus promete que a “descendência” da mulher ferirá a cabeça da serpente (cf. Gn 3,15). Os Padres da Igreja chamavam esse texto de proto-evangelho, reconhecendo nele a primeira profecia messiânica de toda a Escritura.
Comentando este versículo, no seu tratado “Contra as Heresias”, assim afirma Santo Irineu: Tendo [Cristo] recapitulado tudo em si, recapitulou também nossa luta contra o inimigo: provocou e venceu aquele que desde o princípio nos havia feito cativos em Adão, e esmagou com o pé sua cabeça como Deus havia dito à serpente no Gênesis (…) para que assim como por um homem vencido nossa raça desceu até a morte, assim também por um homem vitorioso ascendamos à vida; e como a morte alcançou a vitória contra nós por meio de um homem, assim também nós alcançássemos por meio de um homem a vitória contra a morte.
Maria é esta mulher da qual proveio a “descendência”, o Cristo, que veio para nos trazer a salvação. Foi em visto dos méritos do seu Filho que ela foi preservada da mancha do pecado original. Assim se expressa o n. 41 da Bula Innefabilis Deus do Papa Pio IX : A doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis. Essa orientação cristológica do dogma aparece, também, na oração coleta da Missa de hoje, que retoma o texto da Bula de Pio IX. Aparece, ainda, no Prefácio da Oração Eucarística: A fim de preparar para o vosso Filho mãe que fosse digna dele, preservastes a Virgem Maria da mancha do pecado original… Puríssima, na verdade, devia ser a Virgem que nos daria o Salvador, o Cordeiro sem mancha, que tira os nossos pecados.
O evangelho desta Solenidade nos apresenta a cena da anunciação do anjo à Maria de que ela seria a mãe do Salvador. Lucas afirma que as palavras do anjo (cf. Lc 1,29) deixaram Maria “perturbada”: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor é contigo (cf. Lc 1,28). O imperativo “alegra-te”, em grego Kaire, faz eco às profecias messiânicas de Sf 3,14-15 e Zc 9,9. É mais que uma simples saudação, é o convite a reconhecer a chegada do Messias e a entrar no mistério da alegria que brota no coração do homem com essa chegada.[1]
Maria não é chamada, em primeiro lugar, pelo seu nome (que aparece no v. 30), mas por um qualificativo muito forte: “cheia de graça”, uma expressão que não é aplicada a nenhuma outra figura seja do AT, seja do NT. O prefácio da Missa de hoje faz referência a esse texto quando afirma que o Pai enriqueceu Maria com a plenitude da sua graça.. Trata-se do verbo karitóu no particípio perfeito passivo (vocativo): aquela que “recebeu a graça”. Maria é eleita pelo favor divino e está cheia da sua graça. O verbo karitóu só ocorre duas vezes em todo o NT: em Lc 1,28 e em Ef 1,6. Em Ef 1,6 o sujeito deste verbo é o Pai (cf. Ef 1,3) “que nos agraciou no amado”.
Por fim, o anjo lhe diz: O Senhor está contigo. Tal expressão indica, no AT, o recebimento de uma missão. Em Jz 6,12, por exemplo, ela é empregada com relação a Gedeão, que deve libertar o povo: O senhor esteja contigo, valente guerreiro; em 1Cr 22,11, com Salomão, que deve construir o Templo. Segundo Bovon, “quando Deus está ‘com’ Israel ou com um eleito, não lhe concede simplesmente sua proteção, mas também o chama a uma tarefa”.[2] A tarefa que Maria recebe é a de ser a Mãe do Salvador.
Ao perguntar, no v. 34, pelo modo como se realizará o que fora anunciado pelo anjo, este afirma que Maria será recoberta pela virtude do Altíssimo (cf. v. 35ss); coberta pela sombra do Altíssimo Maria é como o povo de Israel, que outrora fora coberto pela sombra da nuvem em Ex 13,22; 19,16; 24,16; ela é também aquela que é protegida pela sombra protetora das asas do Altíssimo (Sl 17[16],8; 57[56],2; 140[139],8); é aquela sobre a qual se manifesta o poder Criador de Deus (Gn 1,2). As imagens outrora referidas a Israel, aplicam-se agora à Maria. Por isso, a Igreja vai entender que Maria é, também, typos (imagem) do novo Israel, da própria Igreja, e, portanto, modelo para os fiéis.
Por fim, a resposta de Maria demonstra a sua disponibilidade para ser a autêntica “serva do Senhor”. O anjo não se vai, enquanto não ouve a resposta de Maria: segundo Santo Irineu, a sua obediência, põe fim à desobediência causada por Eva.
Ao celebrarmos a memória, festa ou solenidade da Virgem Maria devemos nos recordar que ela é nossa mãe na ordem da fé e modelo de discípula do Cristo. Além de contarmos com sua intercessão, devemos também nos inspirar nos seus exemplos que nos são relatados na Sagrada Escritura. No Evangelho de hoje, Maria aparece como modelo de escuta e obediência. Se, no início, o pecado foi fruto da não escuta e da consequente desobediência, a salvação nos veio por meio de alguém que ouviu e obedeceu: a Virgem Maria. Peçamos a Deus a graça de sermos também aqueles que ouvem e obedecem a Palavra de Deus. Como afirma o Salmo 118(119),5 a Palavra de Deus é uma luz para o nosso caminho. Se queremos andar na luz, sem tropeçar, precisamos abrir o nosso coração à Palavra como fez Maria. Que ela interceda por nós, para que sejamos generosos e deixemos que Deus também “faça” em nós o que Ele quiser, conforme sua Palavra.
[1] Bovon. Lucas. Vol.1. p. 110.
[2] Bovon. Lucas, Vol.1. pp. 110-111.