Eclo 3,3-7.14-17a
Sl 127,1-5
Cl 3,12-21
Mt 2,13-15.19-23
A caridade feita a teu pai não será esquecida (cf. Eclo 3,15)
O Eclesiástico coloca em paralelo o temor de Deus, que é reputado como o “princípio da sabedoria” (cf. Eclo 1,16), e a “honra” devida ao pai, seguida do “respeito” devido à mãe. Para referir-se ao temor de Deus, o autor sagrado recorre aos termos phóbos, phobéomai. O sentido primeiro de tais termos é “ter medo”, “sentir terror”, “assustar-se” etc. O verbo phobéomai costuma traduzir o hebraico yareh que significa “temer/honrar”. O que significa, então, o temor de Deus?
O temor de Deus surge quando Israel experimenta os grandes feitos que o Senhor realizou em seu favor. Dt 4,34, por exemplo, fala dos grandes “terrores” que Deus realizou no Egito em favor do seu povo, para que este fosse libertado das mãos do Faraó. As ações portentosas de Deus fazem com que Israel reconheça o seu poder, poder esse que, para Israel, significa salvação e proteção, pois Deus realizou tais coisas para “salvar o seu povo”. Israel passa, então, a sentir com relação a Deus um “temor” que não é simplesmente “medo”, mas reverência, reconhecimento da sua grandiosidade. Por isso o Eclesiástico afirma que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria: sábio é aquele que, reconhecendo o poder e a soberania de Deus, o reverencia e busca tenazmente realizar a sua vontade.
E a vontade de Deus se manifesta no mandamento de honrar aos pais. Pode-se ler em Eclo 3,2, o texto que antecede o trecho lido hoje como primeira leitura: Ouvi, ó filhos, a advertência de um Pai, e procedei de tal modo que sejais salvos. Deus é esse “Pai”, que ordena aos seus filhos honrar e respeitar o pai e a mãe, reflexo de sua própria paternidade/maternidade. Não nos deve causar estranheza falar da face “materna” de Deus. Longe de qualquer feminismo exacerbado, nos baseamos, sobretudo, em Is 49,15, onde o próprio Senhor afirma de si mesmo: Pode uma mulher esquecer-se de seu filhinho, a ponto de não mais compadecer-se do filho de suas entranhas? Mesmo que ela se esquecesse, eu, contudo, não me esquecerei de ti!
Para falar da “honra” devida ao pai, o autor sagrado se utiliza do verbo grego timao. Tal verbo significa, em primeiro lugar, “fixar o valor de alguma coisa”. Em consequência disso, o verbo ganhou o sentido de “honrar”. Tal mandamento vem acompanhado de muitas promessas. Quem honra seu pai alcança o perdão dos pecados e será ouvido na sua oração cotidiana (cf. Eclo 3,4); terá alegria com seus próprios filhos (cf. Eclo 3,6) e terá vida longa (cf. Eclo 3,7). Para falar do “respeito” devido à mãe, por sua vez, o autor sagrado utiliza o verbo grego doxadzo, que também aparece em Eclo 3,7 referido ao pai. Tal verbo significa “glorificar, honrar, celebrar”. Algumas vezes, tal verbo traduz o verbo hebraico kabed, que costuma ser aplicado a Deus. Em Ml 1,6, por exemplo, o Senhor afirma que “um filho honra um pai” e, se Ele é Pai, “onde está a honra (doxa) que lhe é devida?” Mais uma vez se mostra a conexão que existe entre a honra/temor devido a Deus e a honra/respeito/temor devido aos pais. Não é por acaso que o quarto mandamento, que abre a série que mandamentos que se referem à nossa relação com o próximo, seja exatamente o mandamento que exige “honrar os pais” (cf. Dt 5,16).
A primeira leitura termina com uma série de recomendações aos filhos, para que cuidem dos pais sobretudo na velhice, e termina com uma promessa: “a caridade feita a teu pai não será esquecida” (cf. Eclo 3,15). Deus mesmo recompensará aos que honram seus pais e manifestam para com eles uma caridade verdadeira.
Passando do Antigo para o Novo Testamento, a liturgia de hoje nos apresenta, na segunda leitura, um trecho da carta aos Colossenses onde São Paulo vai do universal para o particular. O apóstolo começa com recomendações que servem para a comunidade no seu conjunto: revestir-se de misericórdia; suportar-se mutuamente; abraçar o perdão como lei fundamental, porque Cristo nos perdoou. O ápice da primeira parte do texto está no v. 14: “acima de todas as coisas, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição”. Se a comunidade não souber viver o amor, esse amor desinteressado e generoso que é reflexo do próprio amor do Cristo por nós, ela não poderá subsistir.
No final do texto, Paulo foca no núcleo que forma a comunidade: a família. A comunidade cristã é uma grande família. Todavia, na sua base estão famílias concretas: pais, mães e filhos, que precisam viver essa relação de amor. Paulo exprime tal relação em termos concretos. As esposas devem ser “solícitas” para com os seus maridos. Aqui temos um eco de Ef 5,21, onde o mesmo apóstolo afirma que marido e esposa devem “submeter-se mutuamente” no temor a Cristo. O verbo que significa “ser submisso” ganha um novo sentido à luz de 1Cor 15,28, que afirma que o próprio Cristo se submeterá ao Pai, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas. Não se trata de uma situação de inferioridade da esposa com relação ao marido, mas do reconhecimento de que tal relação é agora renovada à luz do mistério de Cristo. Por isso, a continuação do versículo: “como convém no Senhor” (cf. Cl 3,18). Não podemos nos esquecer de que Paulo interpreta o matrimônio cristão à luz da união de Cristo com sua Igreja (cf. Ef 5,32).
Os maridos devem “amar suas esposas”. O modo de viver esse amor se ilumina tanto pela continuação do versículo, que afirma “e não sejais grosseiros com elas”, quanto pelo texto de Ef 5,25: Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. O marido deve ser capaz de dar a vida pela sua esposa, assim como Cristo o fez.
Por fim, o apóstolo se dirige aos filhos e aos pais. Estes não devem “intimidar os filhos”, para que eles não desanimem. Os filhos, por sua vez, devem “obedecer aos pais”. Tal obediência é, também, relacionada com o mistério de Cristo: “pois isso é bom e correto no Senhor” (cf. Cl 3,20). Pode-se destacar o que significa o termo aqui traduzido como “intimidar”. Trata-se do termo grego erethidzo, que pode significar “provocar com palavras ultrajantes”. Se, por sua vez, os filhos devem obedecer aos pais, estes, da sua parte, devem cuidar daquilo que dizem para os filhos. As palavras de um pai e de uma mãe podem tanto edificar, quando derrubar completamente um filho que é como um edifício em construção.
Depois de explorarmos, ainda que brevemente, as tantas riquezas das leituras desse dia, podemos nos deter no evangelho. As vicissitudes pelas quais passa a família de Nazaré são um estímulo para que possamos seguir, na confiança de que também nossas famílias não caminham sozinhas. Eles partem para o Egito, tentam retornar para a Judeia, mas a ameaça de Arquelau faz com que eles se retirem para a Galileia. José está sempre atento à voz de Deus que lhe fala por meio do anjo, em sonho, e nunca se cansa de obedecer a Deus, mesmo no meio de tantas idas e vindas. Que também nós não desanimemos de nossas famílias e nunca nos cansemos das “idas e vindas” de nossa história. Nós não estamos sozinhos, pois Deus guia nossa história e a família de Nazaré intercede por nós. Poderíamos hoje repetir a jaculatória que revela a fé simples do nosso povo e que nos traz conforto no meio das muitas lutas da nossa vida: Jesus, Maria e José! Nossa família, vossa é!