- Inspiração bíblica
1.1. Conceito de Inspiração
Ao começarmos o estudo da Sagrada Escritura devemos ter em mente que este é considerado pelos cristãos como sendo um livro inspirado por Deus. Já antes do cristianismo, os judeus consideravam os livros do Antigo Testamento como tendo sido totalmente inspirados por Deus. O dicionário bíblico da Ed. Paulinas nos oferece o seguinte conceito de inspiração: “A ação exercida pelo Espírito Santo sobre os escritores sagrados para determiná-los a escrever com seu concurso especial e sob sua direta influência as verdades que queria manifestar por este meio aos homens, ação tal que por ela Deus é o principal autor dos Livros Sagrados, mas com a colaboração de auxiliares humanos, seus órgãos inteligentes e livres e autores secundários da Escritura, e que o conteúdo dos mesmos é todo inteiro a palavra de Deus escrita.” Para bem compreendermos a inspiração devemos ressaltar alguns pontos:
a) A inspiração bíblica não é uma espécie de êxtase místico, onde o hagiógrafo escreve sem saber direito o que está escrevendo. A inspiração bíblica não dispensa a participação do autor sagrado e nem a sua compreensão do que está escrevendo.
b) A inspiração bíblica não é também a revelação de verdades desconhecidas pelos hagiógrafos, como acontece muitas vezes nos casos dos profetas. A profecia e a inspiração são dois carismas diferentes. A inspiração acontecia quando, por exemplo, o autor sagrado descrevia fatos documentados em fontes históricas sem receber uma especial revelação divina.
c) Deve-se ressaltar então, de fato, o que vem a ser a inspiração bíblica. A inspiração como a temos na Sagrada Escritura é a iluminação da mente do autor por Deus para que este possa transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. Antes de iluminar a mente, contudo, o Espírito Santo fortalece a vontade do hagiógrafo para que este possa escrever o que de fato percebeu. Assim sendo, podemos dizer que a Bíblia é um livro humano-divino. Humano, porque em nada Deus dispensa o trabalho racional do hagiógrafo; divino, porque é Deus quem acompanha passo a passo o trabalho do autor. É a mensagem divina em roupagem humana.
d) Não podemos nos esquecer da finalidade da inspiração bíblica, que é estritamente religiosa. Os livros bíblicos não foram escritos com a finalidade de ensinar ciências naturais, mas sim para nos mostrar o caminho da salvação oferecida por Deus. Não há contradição entre a Bíblia e as ciências naturais, e nem devemos esperar da Sagrada Escritura que esta seja um tratado de biologia ou de física.
2.2. Extensão do conceito de inspiração
Se dissermos que a Bíblia não quer ser um tratado de ciências naturais estamos afirmando que ela então só é inspirada quando fala de assuntos religiosos? Existiriam então partes da Bíblia que não são inspiradas?
O correto é afirmarmos que a Bíblia é inspirada em todas as suas partes. Contudo, a linguagem bíblica é pré-científica. Então, quando a Sagrada Escritura fala da criação em seis dias de vinte e quatro horas, por exemplo, o que ela quer é evidenciar o domínio de Deus sobre a criação. Também nós em nosso dia-a-dia utilizamos expressões que condizem mais com o senso comum e diferem da linguagem científica específica.
Todas as palavras da Sagrada Escritura são inspiradas, ou seja, quando Deus ilumina a mente do autor para escrever ele também ilumina quais as palavras que devem ser usadas.
2.3. A evolução do conceito de inspiração
a) Origens – Já nas primeiras profissões de fé cristãs encontramos a crença na ação do Espírito Santo na origem da palavra bíblica. Assim temos a primeira formulação de fé “Creio no Espírito Santo” (DH 1). Mais tarde, a partir do século IV, essas formulações se ampliam: “Creio no Espírito Santo… que falou pelos profetas” (DH 42) e também “que falou na Lei, anunciou aos profetas… e fala nos Apóstolos (DH 44).[1] Mais tarde, em outros concílios como o I Concílio de Toledo (Concílio Regional em 397) e depois no Concílio de Florença (Concílio Ecumênico – Séc. XV)[2] foi reafirmada a inspiração pelo Espírito Santo das Sagradas Escrituras.
b) Patrística – No início da especulação cristã sobre a inspiração da Sagrada Escritura, o influxo de Fílon foi grande. Contudo, os padres trataram de eliminar a imagem que Fílon trazia, ou seja, aquela de afirmar que a inspiração era uma espécie de êxtase místico do hagiógrafo, onde este era quase que possuído por Deus, ficando fora de si e de sua liberdade e consciência lúcida. A insistência em retirar essa mentalidade teve como resultado a interpretação da inspiração divina como colaboração entre o autor sagrado e Deus. Assim sendo, a literatura patrística interpretou a inspiração com imagens como aquela da lira tocada pelo instrumentista.
c) Escolástica – Ao falar do sistema escolástico, não deixando de lado outros autores, ressaltamos a doutrina de Santo Tomás sobre a inspiração. A expressão “inspiratio” (em latim) tem muitos significados em Santo Tomás. Um destes significados é aquele de toda moção proveniente do exterior. O sopro do Espírito Santo pode atuar sobre as mais diversas faculdades do homem. Santo Tomás entendia assim a inspiração como elevação da mente humana ao nível das percepções sobrenaturais desprovidas de erro. A inspiração seria assim a elevação do intelecto para alcançar tais verdades. Devemos ressaltar ainda o sistema de causalidade aplicado à inspiração bíblica. Segundo tal sistema, próprio da escolástica, Deus é a causa principal (aquele que age por si mesmo) enquanto que o hagiógrafo é causa instrumental (aquele que age movido por outrem).
d) Do Concílio Vaticano I ao Vaticano II – O período posterior ao Concílio Vaticano I foi também um tempo conturbado no que diz respeito ao estudo da Sagrada Escritura. O Concílio continuou afirmando a inspiração da Sagrada Escritura, e trazemos aqui uma definição de Leão XIII, dada posteriormente ao Concílio:
“Pela que nada importa que o Espírito Santo se tenha servido de homens como instrumentos para escrever, como se a esses escritores inspirados, já que não o autor principal, se lhes pudesse ter escapado algum erro. Porque ele de tal maneira os excitou e moveu com seu influxo sobrenatural para que escrevessem, de tal maneira que assistiu enquanto escreviam que eles conceberam retamente e somente o que ele queria, e o quiseram escrever fielmente, e o expressaram aptamente como verdade infalível; de outro modo, ele não seria o autor de toda a Escritura”(EB 125).
Com relação ao Vaticano II devemos ressaltar a suma importância da Dei Verbum. A presente Constituição Dogmática ressalta no seu número 11 que os hagiógrafos recebendo a atuação de Deus são verdadeiros autores do texto sagrado. No número 9 a DV ressalta que as escrituras foram redigidas sob a moção do Espírito Santo. Ainda no número 24 a DV ressalta que a Sagrada Escritura contém a Palavra de Deus e ela é, de fato, Palavra de Deus.
2.4. Algumas questões
Podem existir livros inspirados que não fazem parte do cânon bíblico? Sim. O Concílio de Trento deixou em aberto a possibilidade de existirem estes livros inspirados, contudo não-canônicos. Na I Cor 5, 9 e em Cl 4, 16 nós já encontramos o testemunho de duas cartas de Paulo perdidas. Se um dia alguém encontrar estes escritos eles não entrariam no cânon, contudo, seriam reconhecidos. Eles não entrariam no cânon porque não foram regras de fé para a Igreja desde os primórdios.
Outra questão polêmica é a dos livros apócrifos citados no NT. Em Judas nós temos duas citações apócrifas: v.9 (Miguel/demônio) vv. 14-16 (Henoc 1,9). Judas tinha um objetivo teológico ao usar estas citações apócrifas. Ele quer dar a entender algo de mais profundo. Isso não significa que estes escritos agora passem a ser inspirados e canônicos.
2.5. A veracidade da Sagrada Escritura
Se acreditamos ser a Bíblia inspirada por Deus então devemos afirmar que ela também é dotada de inerrância (ausência de erros) e veracidade (portadora da verdade) com relação aos fatos narrados. Contudo, quando nos deparamos com alguns aparentes “erros” na Sagrada Escritura ficamos de um certo modo desconcertados. O sol de fato terá parado como narra Js 10, 12-14; Dario terá sido filho de Assuero conforme Daniel 9,1? Devemos deixar claro que: É isento de erro tudo aquilo que o hagiógrafo afirma como tal no sentido em que o hagiógrafo o entendeu. Essa afirmação deixa claro que, de fato, tudo aquilo o que o hagiógrafo afirma é de fato veraz, contudo é expresso da maneira como ele o entendeu e de acordo com o gênero literário específico utilizado pelo autor. Quando vemos, por exemplo, os livros de Judite e de Ester errarem na cronologia dos reis, isso é próprio do gênero literário midráxico, onde o fundo moral da história é o mais importante. Quando Mateus fala de quarenta e duas gerações até Jesus divididas em três grupos de quatorze, isso significa que o evangelista quer usar a simbologia do número 42 e, no caso, do número 14. Assim sendo, mesmo quando a Sagrada Escritura trata de assuntos não-religiosos ela não erra, mas apenas adapta o seu modo de falar ao estilo pré-científico da época em que foi escrita.[3]
Autoria:
Pe. Fabio da Silveira Siqueira
Mestre em Teologia Bíblica de PUC/RJ
Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida
[1] ARTOLA, M. Antonio et CARO, José Manuel Sánchez. Bíblia e Palavra de Deus. Vol. 2. São Paulo: Ave Maria, 1996, pp. 152ss.
[2] Concílio de Florença (DH 1334): “A Igreja confessa um só e o mesmo Deus como autor do Antigo e do Novo Testamento, isto é, da Lei e dos Profetas e também do Evangelho, porque os Santos do um e do outro Testamento falaram sob inspiração do mesmo Espírito Santo (quoniam eodem Spiritu Sancto inspirante utriusque Testamenti Sancti locuti sunt)”.
[3] Cf. LIMA, M. L. C. et BETTENCOURT, E. Curso Bíblico Mater Ecclesiae. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011, pp. 38-39.