Este mês de março é marcado pelos festejos do Carnaval…, que muito antes dos três dias oficiais movimenta a sociedade.
O carnaval tem origem pré-cristã. Vem a ser sucedâneo das festas saturnais que os romanos celebravam no começo de cada ano ou, talvez, o eco dos folguedos de entrada de ano ou entrada da primavera, também comuns no mundo greco-romano anterior a Cristo. A Igreja tentou dar sentido cristão a essas manifestações de alegria, como também tentou cristianizar outros usos dos povos a quem ela levou o Evangelho, desde que suscetíveis de interpretação cristã. Os festejos de entrada de ano ou de entrada da primavera acabaram sendo fixado nas imediações da Quaresma; esta, por sua vez, é estipulada em função da Páscoa, a qual cai todos os anos no domingo subsequente à primeira Lua cheia da primavera (ou após o dia 14 de Nisã dos antigos israelitas). Nesta perspectiva, os folguedos de Carnaval poderiam ser concebidos com um Adeus às festas colocado no limiar do tempo severo da Quaresma.
A alegria é um valor exaltado pelo Cristianismo. Conforme São Paulo, é um dos frutos da ação do Espírito Santo no cristão; cf. Gl 5,22. Diz-se mesmo – e com razão – que um santo triste é um triste santo. Acontece, porém, que as manifestações do Carnaval hoje em dia pouco ou nada têm de cristãs; tornam-se frequentemente a ocasião de se expandirem de maneira irracional e pagã os instintos do ser humano; as paixões, de forma aberta ou sutil, tomam então livre curso. Uma das provas disto é o sentimento de vazio e decepção que não poucos foliões experimentam após haver cantado e pulado exaustivamente durante o Carnaval; e isto… para não falar de prejuízos econômicos, desgastes de saúde, crimes e outros males, dos quais alguns deixam marcas irreversíveis.
O cristão, portanto, considera o Carnaval não com olhar irrestritamente condenatório, mas com reservas justificadas.
Qual seria então o segredo da alegria do cristão?
O cristão sabe que a fonte da alegria e da felicidade não está fora, mas dentro do ser humano. O que está fora passa e deixa o homem frustrado “passa a figura deste mundo” (1Cor 7,31); mas o que está dentro, é intocável. “Tudo o que é meu, eu o levo comigo” (Omnia mea mecum porto), dizia o filósofo despojado e enxotado de um lugar para outro na antiguidade.
Mais precisamente: a fonte da alegria para o cristão consiste no cultivo de dois tipos de valores:
1 – Os valores propriamente humanos, que são a honradez, a responsabilidade, a coragem para procurar e abraçar a verdade, a sinceridade, a lealdade, o horror às semiatitudes e à covardia, numa palavra: o ser homem… É, sem dúvida, extremamente feliz “ser homem em vez de ser banana” ou covarde ou “Maria-vai-com-as-outras”, embora “ser homem” exija dureza de vida e capacidade de renúncia;
2 – Os valores especificamente cristãos, que vêm a ser o dom da filiação divina, a herança da eternidade já possuída e desfrutada no tempo, a consciência de que o definitivo e o absoluto estão presentes mesmo no torvelinho desta caminhada terrestre.
O cristão está certo de que a fidelidade a tais valores (humanos e evangélicos) e a fruição cada vez mais coerente dos mesmos são os genuínos mananciais da mais viva alegria,… alegria que não decepciona, porque é o antegozo do definitivo em meio às coisas transitórias.
Ora, logo após o Carnaval, o calendário da Igreja assinala o início da Quaresma… Que esta seja, para os cristãos, o tempo da verdadeira alegria,… alegria haurida não em espalhafatos, mas na austeridade de uma disciplina de vida corajosa e coerente… Alegria haurida na perseverante sequela do Cristo forte e, ao mesmo tempo, humilde,… haurida também na procura de um aprofundamento da fé ou do conhecimento de Deus. Quem mais conhece, mais pode amar e, mais amando, mais se alegra, consoante a oração de São Anselmo de Cantuária († 1109): ”Que eu Te conheça, que eu Te ame, para alegrar-me em Ti!”.
Assim o tempo roxo da Quaresma será o tempo da verdadeira alegria,… alegria pela qual todos os homens anseiam, mas que não raro procuram em cisternas furadas (cf. Jr 2,13)!
Pe. Estêvão Bettencourt, OSB
Texto publicado na Revista Pergunte e Responderemos nº 230, Fevereiro/1979.