Primeiro Evangelho: Mc 11,1-10 ou Jo 2,12-16
1ª Leitura: Is 50,4-7
Sl 21 (22)
2ª Leitura: Fl 2,6-11
Evangelho: Mc 14,1 – 15,47
Prostremo-nos aos seus pés, como ramos estendidos…
No Ofício das Leituras deste Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, ouvimos um belíssimo texto de Santo André de Creta, cujo trecho reproduzimos aqui: “(…) em vez de mantos ou ramos sem vida, em vez de folhagens que alegram o olhar por pouco tempo, mas depressa perdem o seu verdor, prostremo-nos aos pés de Cristo. (…) prostremo-nos a seus pés como mantos estendidos.”[1]
Com a celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor tem início para nós a Semana Santa, a “Grande Semana” como era chamada pelos antigos. Era assim chamada em virtude de nela se concentrarem as celebrações que nos colocam em contato com o mistério da morte e ressurreição de nosso Divino Redentor. Embora, em cada Eucaristia, o Mistério Pascal de Cristo, ou seja, a sua morte e ressurreição, se atualize para nós, nesta semana, através de celebrações muito específicas, somos confrontados com cada passo de nosso Salvador em direção à sua Páscoa, desde a entrada triunfante em Jerusalém, até a manhã gloriosa do sepulcro vazio.
Hoje, nosso Senhor entra triunfalmente em Jerusalém. É aclamado como “Filho de Davi”, um título messiânico. Nosso Senhor passa por cima de ramos e mantos estendidos e até mesmo da boca das criancinhas sai a proclamação: “Bendito o que vem em nome do Senhor!” Mas, estes mesmos que aqui o aclamam como Senhor e Rei, gritarão daqui a pouco: “Fora com Ele! Crucifica-o!” É o mistério do pecado; é o mistério da ingratidão infinita dos homens, que não souberam reconhecer que o Amor os visitava.
O amor infinito de Deus está hoje diante dos nossos olhos, revelado em Jesus Cristo que se entregou por nós no madeiro da cruz. Hoje a Palavra nos coloca em contato, com o Cristo que se esvazia para nossa salvação. A sucessão das leituras nos faz passar do momento glorioso da sua aclamação quando entrava em Jerusalém, para o mistério da sua entrega na cruz, culminando com a proclamação da Paixão.
A primeira leitura de hoje é do livro do profeta Isaías, e nos traz o “terceiro canto do Servo de Adonai”. Esta figura misteriosa profetizada por Isaías, alguém que assumiria sobre si os pecados dos homens, é o próprio Cristo, que assumiu no seio da Virgem a nossa humanidade a fim de oferecê-la na cruz, para nossa salvação. Como não reconhecer nestas palavras o Cristo: “Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba; não desviei o rosto de bofetões e cusparadas…” Ele fez tudo isso por nós. Ele experimentou o abandono e sentiu-se angustiado no madeiro da cruz, como nos revela o Salmo 21, que o próprio Cristo rezou sobre a cruz como nos testemunha o evangelista Marcos: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste…”
Paulo nos testemunha esta entrega total do Cristo por nós na segunda leitura. Este trecho da carta aos Filipenses nos apresenta o mistério do esvaziamento de Cristo. Afirma o apóstolo, que sendo igual ao Pai em divindade e existindo desde toda a eternidade junto do Pai, Cristo quis voluntariamente abrir mão da sua glória a fim de nos salvar. Ele não abriu mão da sua divindade, pois continuou sendo Deus, mas abriu mão da sua glória, daquela glória que Ele revelou aos discípulos no Monte Tabor, daquela glória que Ele sempre teve junto do Pai, a fim de ser igual a nós em tudo, exceto no pecado. Paulo nos diz que Ele assumiu a “condição de servo”, ou seja, sendo Deus, assumiu a forma da criatura e tornou-se igual aos homens: propenso ao sofrimento, às angústias desta vida terrena, à caducidade de nossa condição e condenado a morrer. Ele “humilhou-se” a si mesmo diz o apóstolo; Ele fez a sua kénosis; Ele se fez obediente até a morte e “morte de cruz”, acrescenta Paulo. Ele não somente assumiu voluntariamente a morte, mas o pior gênero de morte: a morte de cruz, a morte dos malditos, a morte dos criminosos, a morte daqueles que – segundo a concepção hebraica – estavam completamente separados de Deus. O “Filho Bendito” fez-se “maldito” por nós (cf. Dt 21,23; Gl 3,13).
O ponto alto de toda a liturgia da Palavra deste domingo é a proclamação da Paixão. Pouco a pouco a liturgia da Palavra dirige nosso olhar da entrada gloriosa de Cristo em Jerusalém, aclamado com o solene “Hosana”, para o momento crucial da sua entrega na cruz.
A Paixão segundo Marcos é considerada o momento-chave de todo seu evangelho. Na hora da Paixão é que o evangelista revela quem realmente é o Cristo, e tal revelação é posta nos lábios de um pagão. Depois que Jesus expira, um “oficial do exército” que estava à sua frente afirma: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!” O uso do advérbio torna mais enfática a afirmação deste centurião. Essa é a “verdade” a respeito de Jesus: Ele é o Filho de Deus!
Essa expressão “Filho de Deus” é rara em Marcos. Em Mc 1,1 nós a encontramos no título do Evangelho. Em Mc 1,11 e em 9,7 é o Pai quem dá testemunho de Jesus, respectivamente no seu Batismo e na sua Transfiguração, chamando-o “meu Filho”. Em Mc 3,11 e depois em 5,7, os possessos declaram ser Jesus o “Filho de Deus”. Em outros lugares, como na parábola de Mc 12,6 e do dito de Jesus de Mc 13,32, Jesus dá a entender que Ele é o Filho de Deus, embora essa expressão completa não apareça. Ainda temos o texto de Mc 14,61-62, onde o Sinédrio quer saber se Jesus se declara ou não o “Filho de Deus bendito”. Jesus afirma que o é. Enquanto confissão de fé, no entanto, a expressão “Filho de Deus” encontra-se comente em Mc 15,39, acompanhada, como já dito antes, do advérbio “verdadeiramente” e colocada na boca de um pagão. É na hora da sua paixão que Jesus se autorevela. Somente à luz da sua paixão, da sua entrega na cruz é que sua missão pode ser compreendida. Ele não é um taumaturgo, um “fazedor” de ações extraordinárias, um curandeiro, alguém que oferece prosperidade material ou tranquilidade absoluta. Não! Ele é o Filho de Deus que, por amor, se entregou na cruz por nós e ressuscitou para abrir-nos as portas da eternidade.
Que nesta Semana Santa possamos contemplar o amor de Deus, revelado em Cristo que se ofereceu por nós. Possa a contemplação da sua entrega e do seu sofrimento, um sofrimento portador de salvação, nos recordar que o nosso sofrimento também pode ser salvífico, se soubermos uni-lo ao sofrimento de nosso Redentor. Que a alegria de celebrarmos a Ressurreição do Senhor, sua máxima vitória sobre a morte, desperte e alimente em nós a esperança de que não é a morte que reina sobre o mundo, mas a vida… Assim, poderemos seguir em paz, sabendo que a última palavra quem tem é o Pai, que “ressuscita os mortos” (cf. Jo 5,21)!
[1] Santo André de Creta, Bispo, Oratio 9 “in ramos palmarum”