As mudanças políticas e culturais nas últimas décadas trouxeram novas formas de pensamentos e de comportamentos que se constituíram, na vida civil e religiosa, em concordâncias e discordâncias éticas.
As novidades crescentes e a pluralidade de afirmações e de posições conduziram a Igreja Católica por um diálogo mais aberto e franco com o mundo, mesmo que este se mostre combativo e/ou indiferente à fé cristã.
Anunciar e viver a fé em situações diferentes das do passado sem, no entanto, abandonar o seu fundamento perene é o que se denomina hoje como uma nova evangelização por parte dos bispos, padres, religiosos e leigos.
O eixo central desse novo movimento é a defesa e o anúncio da fé, mas caracterizados pelo respeito aos dialogantes e pela fidelidade ao Deus Uno e Trino, que revelando-se deu a conhecer a sua íntima e misteriosa essência e também a profundidade e a dignidade da pessoa humana.
A nova evangelização proposta e desenvolvida pela Igreja nesses últimos tempos não ignora todas as concepções opostas sobre família, matrimônio, sexualidade, vida, amor humano, liberdade, felicidade, sofrimento, etc… O que Ela propõe e se dispõe a realizar dentro da própria Igreja e para fora da Igreja é apenas uma concordância básica sobre o que se deve chamar e proclamar a respeito do ser humano, ou seja, a sua específica e valiosa humanidade.
Qualquer pessoa, hoje como ontem e como sempre, “é capaz de realizar um alargamento da alma que o(a) liberte das fórmulas e dos preconceitos adquiridos. Para entender o que há de misterioso e profundo no homem e em tudo que lhe concerne, (…) não é preciso ser grande doutor em filosofia (…)” (cf. Gustavo Corção, Claro escuro, págs. 21-22, citado por Marta Braga, ‘Lições de Gustavo Corção, Quadrante 2010, pag. 101).
Fórmulas e preconceitos geram discordâncias em matérias tão básicas para a humanidade como são a questão do valor da vida humana, da sua transmissão digna e da sua concepção, bem como a questão da natureza e do caráter humano ou técnico que a acompanha, bem como a realidade da dimensão sexuada da pessoa humana quanto a sua identidade e orientação.
Observa-se, entretanto, na atualidade, dentro e fora da Igreja, vozes discordantes ressoando em torno da anticoncepção, do aborto e da eutanásia, da reprodução assistida e das uniões homoafetivas, da unidade-indissolubilidade matrimonial e das novas uniões: crescem nos meios culturais e universitários, nos grupos de estudos e nos cursos de formação do laicato, posturas e discussões sobre tais matérias, e não se busca com tanto ardor e interesse as concordâncias éticas fundamentais
Será que a Igreja Católica quer trazer para si todas essas questões discordantes como se fossem só dela os “direitos autorais”, ou será que para Ela se encaminham pessoas que estão convencidas dos direitos inerentes à própria natureza humana?
É a fé que conduz à convicção do valor da vida desde a sua concepção até o seu término ou é essa convicção pessoal presente na consciência moral que, de certo modo, encaminha as pessoas de boa vontade para a Igreja a fim de iluminar com a fé a certeza e a retidão ética que adquiriram a partir da experiência primitiva que têm do bem e da verdade?
A ética natural e a moral católica pressupõem sempre a adesão a um compromisso mais profundo com a humanidade presente em cada pessoa, e este é sempre um caminho livremente escolhido e responsavelmente vivido primeiro consigo mesma, depois com a sociedade e, no fundo, com o Criador e com o Redentor do homem.
A fé e a razão não se contrapõem, nem a religião e a ciência se combatem mutuamente, como nos vem demonstrando tanto os últimos Papas quanto os autênticos cientistas em várias aéreas do conhecimento.
A fé e a razão, a religião e a ciência, estão comprometidos plenamente com a natureza tal como se apresenta na realidade, especialmente a natureza humana, uma vez que tanto os religiosos quanto os cientistas são pessoas, têm igual dignidade, buscam a verdade pelos caminhos que lhe são próprios e ambos – cada um com sua autonomia responsável e segundo seus modos específicos – devem contribuir para o bem comum da humanidade.
Tanto quem crê em Deus e como quem só crê na ciência têm um denominador comum => são pessoas com a suficiente inteligência para considerarem que é possível estabelecer um mundo mais civilizado a partir de uns pontos concordantes eticamente falando.
1) – tudo que existe é bom, enquanto se respeita a sua natureza intrínseca.
Se no campo da fé e no da razão observa-se a bondade natural das criaturas então se constrói o mundo, caso contrário ele é destruído. A religião e a ciência não são dimensões humanas perigosas nem belicosas. O perigo não está nelas, mas sim no próprio homem.
Deve-se incentivar a boa fé e a boa ciência e não deve existir fronteiras para a religião reta e para a aquisição honesta de conhecimento. Os limites devem ser colocados para a liberdade e para a responsabilidade das pessoas que creem e que utilizam as suas ciências.
Desde que tudo que foi criado por Deus é bom e é um bem dentro do universo, só há uma fronteira que deve ser bem delimitada e bem respeitada: a fronteira da dignidade inerente à pessoa humana.
Quando esta fronteira é pisoteada e ultrapassada por homens e por mulheres que abandonam a própria convicção sobre a dignidade única da pessoa humana e sobre a bondade do seu existir no tempo e no espaço então, sim, inicia-se um processo de discordância ética que acabará na destruição de vidas humanas, e os avanços científico-culturais junto com concepções religiosas errôneas servirão de instrumentos propícios para infiltrar nas consciências humanas que o bem é um mal e que o mal é um bem.
A recuperação da dignidade humana só acontecerá quando todas as ações humanas estiverem inscritas no domínio do agir, onde o homem e a mulher são pessoas, e não no domínio do fazer, onde o ser humano é mais uma peça da máquina cujo nome é bastante variável, tais como a máquina do poder econômico, ou do poder político, ou do poder cultural, ou do poder estatal, etc…
2) – não só o ser é um bem, mas também as diversas dimensões naturais do ser têm sua bondade e dignidade.
A dimensão intelectual, a volitiva, a religiosa, a sexuada, a afetiva e a psíquica, a física e a espiritual, a social, a cultural e a científica, a ética e a estética (o esplendor da verdade sobre a pessoa humana e a beleza do amor ao ser humano), todas juntas e cada uma delas em particular devem ser valorizadas e vividas, pois nelas se refletem com todas as cores o Bem da qual participam, isto é, Deus Uno e Trino.
A visão, a sintonia, a perfeita harmonia de verdades sobre o homem e a mulher e de amor por eles são ainda possíveis no mundo em que vivemos e capazes de devolverem o entusiasmo pelo ideal humanitário, que é o “desejo de tornar bela e verdadeira a existência, cada existência, enriquecendo-a com aquele tesouro que faz da vida uma obra-prima e de cada homem um extraordinário artista: a caridade, o amor” (cf. Bento XVI, 29.VI.11 – 60º aniversário da sua ordenação presbiteral, encontro do dia 4.VII.11, com 60 artistas de fama internacional, promovido pelo Pontifício Conselho para a Cultura).
As vidas carentes desse amor ao humano presente em cada homem, em cada mulher, em cada período da sua história, causaram inúmeras vezes uma profunda discordância entre as pessoas, e tanto mais se vai abrindo a fenda que as separa, impedindo então um diálogo franco e aberto entre elas, e só se ouvem gritos e discussões através do espaço que as divide, porque não se percebe a falta que faz no mundo a presença de Deus, que é Amor.
Guerras, técnicas jurídicas de legislação, metodologias para controlar a até impedir novas concepções ou nascimentos, protocolos de pesquisa para encontrar soluções para problemas até agora insolúveis, instrumentos para prevenir doenças, regimes políticos e organismos não governamentais, códigos de ética, etc., são tentativas de encontrar resultados favoráveis às pessoas dentro de um mundo que já não permite a entrada de Deus, seu Criador e Libertador, seu Senhor e seu Artista.
O fato de encontrar vozes discordantes a respeito do aborto e da eutanásia, a respeito da anticoncepção e da reprodução assistida, a respeito das uniões afetivas e do casamento, da família e da educação para o amor, nada mais significa que se estabelecem um predomínio na cultura atual, o do desencanto com a vida humana.
O mundo enlouqueceu, dizem os saudosistas éticos, que consideram que antigamente o mundo era bem melhor; o mundo progrediu moralmente, dizem os defensores das diversas culturas reducionistas, que pregam o valor do parcial em detrimento do integral, do total, do pleno; o mundo acelerou e as mudanças bruscas e rápidas o conduzirão a níveis de perfeição social, dizem os profetas de ideologias diversas.
Nem os profetas, nem os produtores de culturas estreitas, nem os saudosistas, conseguirão encantar novamente as pessoas a favor do valor e da dignidade presentes na vida de cada ser humano.
Serão os artífices, os construtores de uma nova cultura – a cultura da vida –, os que irão aclamar e proclamar que vale a pena ter bom senso, retidão e sabedoria (cf. Ofício das leituras, 3ª feira, 14ª Semana do TC, II semana, p. 797, Liturgia das Horas), isto é, ser sensatos quanto à vida, que é um bem divino, ser reto no uso dos conhecimentos científicos buscando, sobretudo, o bem do indivíduo e da sociedade, e viver a sabedoria no seu sentido estrito, que é saber ouvir a voz da natureza humana, que é a voz de Deus-Criador e de Deus-Redentor, que grita em favor do respeito e da visão integral da pessoa humana.
A pessoa humana necessita dessa cultura da vida sempre, especialmente hoje onde parece ter adquirido ‘o direito de cidadania’ a cultura da morte, a cultura da insensatez, da falta de escrúpulo, da surdez intelectual, dando demasiado espaço a um cientificismo e a um tecnicismo desumano.
Não se pode discutir e resolver as grandes questões da vida, que envolve pessoas especialmente sofridas, sem uma referência de sua constituição humana, sem um conhecimento objetivo de dignidade natural, sem um respeito pela liberdade, pela responsabilidade, pela socialidade, pela subsidiaridade, isto é, sem uma visão antropológica de referência, integral e equilibrada (personalismo, centralidade e prioridade da pessoa humana inserida na sua realidade individual, social e ecológica).
Essa visão do homem não é nem dogmática, nem moralista, mas realista e comunitária.
- Antonio Augusto Dias Duarte
Bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Painel promovido pela Escola Mater Ecclesiae, em 09/07/2011 no Ed. João Paulo II – Rio de Janeiro-RJ.