1ª Leitura: At 14,21b-27
Sl 144
2ª Leitura: Ap 21,1-5a
Evangelho: Jo 13,31-33a.34-35
“Eis que eu vos dou um novo mandamento” (Jo 13,34)
Iniciando nossa reflexão pela segunda leitura, vemos descortinar-se a visão de João, a qual nos tem acompanhado nesses domingos do Tempo Pascal. João viu um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra passaram e o mar já não existe. Gênesis e Apocalipse se tocam nesse texto. É a unidade da Palavra de Deus que misticamente se apresenta diante dos nossos olhos. Gênesis nos fala de um primeiro céu e uma primeira terra, de uma harmonia original que foi abalada pelo pecado dos primeiros pais. Cristo nos devolve a essa harmonia, elevada, todavia, ao seu ponto máximo, porque não se trata apenas de um voltar ao paraíso terrestre, mas de caminhar em direção ao paraíso celestial que o Senhor preparou para nós, onde o mar – que aqui simboliza o mal e toda força que se opõe a Deus – já não existe.
Nestes tempos novos que o Cordeiro inaugura, surge a Jerusalém Nova, que desce do céu, de junto de Deus, vestida em trajes nupciais. Trata-se aqui da união definitiva de Cristo com sua Igreja, que nos tempos futuros realizará definitivamente suas núpcias místicas, amando o seu esposo não mais de modo imperfeito, mas de maneira paritária, como convém ao verdadeiro matrimônio. O próprio esposo capacitará a esposa a amar assim, no final dos tempos.
A Jerusalém celeste não é produto de nossas mãos. É Deus quem forma e adorna a sua esposa. Ela desce de junto de Deus, já vestida, para as suas núpcias. Esse trecho do Apocalipse que hoje ouvimos nos convida a lançarmos um olhar para a escatologia. Devemos ver que é Deus quem prepara para o seu Cordeiro uma esposa. É Deus quem a adorna, a enche de dons e a capacita a amar o seu Cordeiro numa justa medida conveniente a uma esposa que quer ser fiel. Essa Jerusalém nova é sacramentalmente sinalizada na Igreja.
Essa Igreja à espera de sua consumação é convidada hoje ao amor que liberta, à “verdadeira liberdade” no amor como pede a oração coleta. O Evangelho que hoje ouvimos pertence ao contexto daquela ceia derradeira que Jesus fez com seus discípulos antes da sua Paixão. Aqui tem início o assim chamado discurso de despedida de Jesus (Jo 13,31), onde ele começa a elaborar o seu testamento espiritual aos apóstolos, uma vez que Ele sabe que “por pouco tempo” estará ainda com os discípulos.
Poderíamos dividir em duas partes essa perícope. Primeiro, temos os versículos 31-32 onde Cristo fala da sua glória. Lembremo-nos que versículos antes Judas havia saído do recinto onde os apóstolos celebravam a Páscoa com Jesus, com o intuito de entregá-lo (Jo 13,21-30). Em virtude desse gesto de Judas que abre o processo para a Paixão, Cristo usa o “agora” que domina toda a passagem. “Agora” a glória do Filho se manifesta, porque Ele veio justamente para isso, para dar sua vida em favor de muitos. Deus é glorificado no Filho, porque na entrega do mesmo Filho a glória do Pai também se manifesta.
É difícil para nós entendermos a ligação entre morte e glória, entre cruz e ressurreição. São os paradoxos divinos. O fato é que o Cristo vem nos revelar que esse paradoxo está aí e não existe jeito de quebrá-lo com a nossa lógica humana, porque a nossa salvação se dá por meio da lógica de Deus. A glória de Cristo é a cruz. É por ela que Ele alcança a ressurreição e nos garante a vida em plenitude. A glória da Trindade se revela através da entrega do Filho. Em nossa forma de pensar, glória significa fama, riqueza, significa receber toda a atenção dos outros, significa, ainda, que outros vivem em função de nos “glorificar”. Na vida da Trindade, a glória se manifesta no esvaziamento do Pai para gerar o Filho e no esvaziamento do Filho para obedecer ao Pai, num movimento eterno de amor e reciprocidade que gera a terceira e também eterna pessoa da Trindade, o Espírito Santo, que é puro amor em movimento.
Esse amor de “esvaziamento”, de kénosis, Cristo nos revelou na cruz, quando esvaziou-se totalmente para dar-nos a salvação. A glória de Cristo está em esvaziar-se para que sejamos salvos, para que atinjamos a estatura do homem perfeito. Cristo não somente realiza esse movimento de amor por nós, mas nos convida, no contexto desse fraterno convívio, dessa ceia fraterna, a entrarmos na mesma dinâmica de kenósis (esvaziamento) amorosa.
A Eucaristia é a expressão de um amor que se entrega sem medidas. Cristo nos convida à essa entrega, fazendo-nos participar dessa maravilhosa “dança”, desse movimento de amor que é a vida trinitária. Eis o mandamento novo: “amai-vos uns aos outros”. O mandamento não é novo na letra, porque o Levítico já o havia anunciado, mas é novo no espírito, porque agora não se trata mais de amar de um modo puramente humano, mas de amarmos com a mesma qualidade de amor com a qual Cristo nos amou. Cristo não nos amou com um amor meramente de atração (éros) ou simpatia (filia), mas nos amou com seu amor divino (ágape) que inclui a atração, o desejo, a simpatia, mas os supera enormemente. Essa é a senha/sinal do discípulo. O amor nos faz ser reconhecidos como discípulos de Cristo. O amor entre nós deve ser um sinal para os que não crêem.
Precisamos pedir ao Espírito a graça desse amor. A Palavra de hoje nos convence de que não sabemos amar como convém. Amamos somente com nosso interesse. Em nossos mais puros desejos transparece sempre a expectativa de uma correspondência no amor. Somente o Espírito de Deus pode nos fazer amar como Cristo nos ama. Cristo simplesmente nos ama, porque Ele é “verdadeiramente livre”.
O salmista hoje convida as obras do Senhor a glorificarem o nome do Senhor e convida aos santos do Senhor a bendizê-lo com seus louvores. Nós somos a obra-prima de Deus; somos os seus santos eleitos; sim, de fato o somos, mesmo mergulhados que estamos em nosso pecado. Glorifiquemos o nome do Senhor. Espalhemos, como diz o salmo, seus prodígios entre os homens. Esse louvor nos liberta, dilata o nosso coração, nos faz amar como convém e esperar o Reino que virá, mas que já está misteriosamente presente no meio de nós. Peçamos ao Senhor que dilate nossos corações. Que alimentando-nos da sua vida, que é amor, possamos tornar-nos amor, simplesmente amor.