1ª Leitura: Dt 6,2-6
Sl 17
2ª Leitura: Hb 7,23-28
Evangelho: Mc 12,28b-34
O amor a Deus e ao próximo: o resumo da Lei
No evangelho deste domingo um “mestre da lei” aproxima-se de Jesus, depois de ter visto que ele fizera calar os saduceus. Marcos define essa figura como um “grammateus”, termo traduzido em nossas bíblias como “mestre da lei” ou “escriba”. Em Lc 5,17 encontramos certo esclarecimento a respeito de quem eram essas figuras, quando o evangelista coloca em paralelo os “mestres da lei” (nomodidáskaloi – Lc 5,17) com os “escribas” (grammateus – Lc 5,21). Não eram simples “escribas”, secretários de alguém importante ou figuras cuja profissão era escrever. Tratava-se de uma classe bastante específica no judaísmo dos tempos do NT e já antes: eram aqueles que procuravam estudar, compreender e explicar a Lei. Criaram muita casuística em torno da Lei e, por isso, muitas vezes são criticados por Jesus, juntamente com os fariseus.
Esse “escriba” ou “mestre da Lei” que saber de Jesus qual é o maior mandamento da Lei. Esta cena encontra seu paralelo em Mt 22,34-40, onde a pergunta é feita pelos “fariseus”. Lc 10,25-28 também traz o paralelo deste relato, afirmando, mais de acordo com Marcos, que a pergunta fora feita por um “legista” (nomikós). Em Mateus e em Lucas, a cena apresenta-se como uma tentativa de se pôr Jesus à prova, utilizando-se os verbos gregos “peiradzo” e “ekpeiradzo”, respectivamente. O verbo “peiradzo” significa “tentar, pôr à prova”. É o verbo que aparece na versão grega do Salmo 94(95) no v. 9: no deserto, o povo pôs Deus à prova, tentanto-o, para ver se ele lhes daria ou não água para beber (cf. Ex 17,1-7; Nm 20,1-13). Do mesmo modo, os fariseus e os legistas procuram tentar Jesus. Em Marcos, contudo, a cena não é introduzida dessa forma, e o escriba/mestre da Lei é, inclusive, elogiado no final, quando Jesus afirma que Ele “não estava longe do Reino de Deus” (cf. Mc 12,34).
A resposta de Jesus une duas passagens do Antigo Testamento, mais precisamente da Torá ou Lei de Moisés, como são chamados pelos judeus os cinco primeiros livros da Escritura. A primeira passagem que Jesus cita é a que ouvimos na primeira leitura. O maior mandamento da Lei é “amar a Deus”, com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças. O Deuteronômio utiliza três termos: coração, alma e força. O termo coração indica o mais íntimo do homem; o termo ora traduzido por “alma” é o termo hebraico “nefesh”, que significa o princípio espiritual vital que Deus colocou no homem no início da criação; o último termo, o termo hebraico me’od, pode indicar a força, o vigor, o poder. Marcos cita Dt 6,5 de um modo peculiar, desdobrando o último conceito em dois: ele não fala apenas de “força”, mas de “entendimento” e “força”. O sentido, contudo, permanece o mesmo: o homem deve amar a Deus com todo o seu ser. Tal amor expressa-se na obediência, haja visto que tanto o v. 3 quanto o v. 4 começam com o imperativo “Ouve, Israel”. O amor a Deus expressa-se na escuta e na obediência à sua Palavra.
Jesus, todavia, une a este mandamento um outro contido em Lv 19,18: “O segundo mandamento é: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo!’” (Mc 12,31). A dupla dimensão da vida espiritual está aqui manifesta: a dimensão vertical, que nos une a Deus; e a dimensão horizontal, que nos une aos irmãos. As duas coisas estão intimamente unidas. Encontramos tal forma de pensar já no judaísmo rabínico da época de Jesus e, também, posterior. Os dois mandamentos, o do amor a Deus e do amor ao próximo, são considerados os dois princípios basilares da Torá. Assim se expressa, por exemplo, Fílon de Alexandria (20 a.C. – 50 d.C.): “Existem, por assim dizer, dois ensinamentos fundamentais aos quais estão subordinados os numerosos princípios e ensinamentos concretos: em relação a Deus, o mandamento da veneração a Deus e a piedade; em relação aos homens, o amor ao próximo e a justiça”.[1] A partir dessa perspectiva de Jesus, João vai afirma na sua carta: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20).
Ao acolher esta palavra neste dia do Senhor, devemos nos questionar a respeito dessa dupla dimensão do amor que constitui a síntese da Lei: o amor a Deus e o amor ao próximo. Se tivermos dúvidas a respeito de quem é o nosso próximo, leiamos Lc 10,29-37: a parábola do bom samaritano. O “próximo” é todo aquele que cruza o nosso caminho e no qual devemos reconhecer a face do Cristo. No dia do juízo seremos avaliados, medidos, pela medida do amor. Se tivermos amado ao Senhor com todo nosso ser e aos irmãos “como a nós mesmos”, poderemos entrar, com alegria, no repouso que o Senhor nos preparou. Esforcemo-nos por entrar nesse repouso, deixando que o Espírito Santo nos penetre, libertando-nos do ódio, da indiferença, e fazendo nascer em nós um sincero amor, tanto a Deus quanto ao próximo, a fim de que entremos na plena posse dos bens que para nós estão reservados.
[1] GNILKA, J. El Evangelio Según Marcos, v. I, p. 193-194.