1ª Leitura: Sb 2,12.17-20
Sl 53
2ª Leitura: Tg 3,16 – 4,3
Evangelho: Mc 9,30-37
“É o Senhor quem sustenta minha vida!” (Sl 53,6)
O Salmo responsorial dessa liturgia, o Salmo 53, além de funcionar como resposta da assembleia à primeira leitura, serve também de conexão entre esta e o Evangelho. Trata-se de um salmo de súplica, onde o justo clama a Deus porque está sendo perseguido pelos ímpios. O salmo é concluído com a proclamação da bondade do “nome” do Senhor, para o qual o salmista quer ofertar, de coração, seu sacrifício de louvor.
A primeira leitura, um trecho do livro da Sabedoria, nos traz a mesma temática do justo que é perseguido. O texto é todo ele uma fala dos ímpios, que revelam aqui seus planos. Os ímpios desejam armar “ciladas” para o justo porque a sua presença lhes é “incômoda”. O gênero desse “incômodo” vem relatado no versículo 12:
- O justo se opõe ao modo de agir do ímpio;
- O justo repreende no ímpio as transgressões da Lei;
- O justo reprova as faltas dos ímpios contra a disciplina.
Poderíamos resumir estes três “incômodos” num só: o agir do justo. Não é algo que o justo faça contra o ímpio que o incomoda, mas o seu próprio modo de agir, que se torna em si uma repreensão.
Os ímpios decidem, então, punir o justo. Por trás dessa punição existe uma malícia maior que se explicita no v. 18: testar se, de fato, Deus está com o justo. Segundo a mentalidade dos ímpios dessa perícope, se Deus estiver com o justo, Ele o livrará dos sofrimentos. Os ímpios querem “ofender” e “torturar” o justo para testar a sua serenidade e provar a sua “paciência”, ou, numa tradução melhor, a sua “resignação” diante do sofrimento; querem condená-lo à morte vergonhosa, para ver se de fato alguém virá em seu socorro.
Esse texto se aplica à vida de muitos justos, que se tornaram ao longo da história da salvação e ainda se tornam nos nossos dias, um “incômodo”, simplesmente porque praticam a vontade de Deus. Todavia, esta perícope do livro da sabedoria ganha ainda mais luz quando lida em harmonia com os acontecimentos derradeiros da vida do Cristo. Ele é, de fato, o único Justo, no qual todos somos justificados. Sua vida e sua palavra se tornaram incômodo e, por isso, Ele foi condenado à morte vergonhosa na cruz. Também na cruz os evangelistas nos narram que seus algozes exigiam sinais, sinais de que Deus estava com Ele. Os ímpios do livro da Sabedoria e os ímpios que crucificaram Jesus se igualam não só quanto à maldade de seus atos, mas também quanto às suas expectativas: eles acham que a ação de Deus em favor dos justos deva ser o livramento da infâmia que o justo sofre por parte dos ímpios. Isso revela uma falta de fé na vida eterna. Na verdade, a grande resignação dos justos diante dos seus algozes, assim como o foi a resignação do Cristo na cruz, é prova da sua confiança de que Deus lhes está já auxiliando e virá em seu socorro, não livrando-os do sofrimento, mas fazendo-os passar da morte para a vida eterna.
A perícope evangélica de hoje nos traz duas temáticas que estão unidas. A primeira a encontramos em Mc 9,30-32: o segundo anúncio da paixão. Cristo há de experimentar o sofrimento destinado ao justo, como fala a primeira leitura. Todavia, não é só de morte que Cristo fala; Ele também anuncia a sua ressurreição. Os discípulos, porém, “não compreendem”, como afirma Marcos e preferem não perguntar, porque têm “medo”.
A segunda parte da perícope, Mc 9,33-37, nos narra o que os discípulos vinham conversando durante o caminho. Vemos que há um paradoxo entre o que Jesus dizia e o que os discípulos conversavam entre si. Jesus falava de cruz, de sofrimento, da consumação da sua vida de acordo com o que previra o livro da Sabedoria e tantas outras passagens do Antigo Testamento. Os discípulos, por seu turno, discutiam frivolidades: queriam saber qual dentre eles era o maior. Os próprios discípulos permanecem calados diante da pergunta de Jesus a respeito do teor da sua conversa. Todavia, para o Cristo, aquele que sonda os rins e os corações (cf. Sl 138), nada está oculto. Jesus diz então uma frase que visa curar a chaga daquela divisão surgida entre eles por causa da vaidade de querer ser maior ou menor: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (cf. Mc 9,35)
No Reino de Cristo só é grande quem se faz pequeno, e só é o primeiro, quem sabe se fazer o último. Eis aqui uma lei evangélica difícil de ser seguida. Muitas vezes imitamos a pureza do Cristo, sua virgindade; imitamos também sua generosidade e partilha; cuidamos dos desamparados espelhando-nos n’Ele; contudo, até mesmo nas coisas mais santas somos tomados pela vaidade de querermos ser os primeiros, os que são servidos. Trata-se, sem dúvida, da paixão denominada pelos padres do deserto de vanglória, paixão essa que precisa ser dominada pela prática sincera da humildade.
Neste ponto que acabamos de expor, o evangelho se une à primeira leitura. Tiago trata das “paixões” que estão em conflito nos homens. O mesmo apóstolo fala, ainda, de rivalidades e invejas. Sem dúvida, quando entra na comunidade cristã o desejo de ser o maior, tudo perde o seu sentido. Agora não é mais Cristo a meta, mais eu mesmo sou a meta. Não é mais a glória de Cristo que se busca, mas a minha glória pessoal. Tudo isso, porque queremos ser os “maiores”, igualzinho aos apóstolos quando estavam a caminho de Cafarnaum. Cristo lhes deu uma palavra para curar seus corações: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (cf. Mc 9,35) Que essa palavra possa ser também para cada cristão que celebra a Eucaristia neste domingo fonte de cura: cura da ansiedade de querer ser o primeiro e o maior; cura da vanglória, que conduz à morte do espírito; cura das divisões interiores e exteriores, que desagregam e destroem as comunidades. Que a imitação do Cristo humilde, que se oferece na simplicidade do pão e do vinho eucaristizados – cure em nós as paixões que nos dividem e impedem de contemplar Aquele que é a meta de toda a nossa existência, o Cristo.