1ª Leitura: Is 50,5-9a
Sl 114 (115)
2ª Leitura: Tg 2,14-18
Evangelho: Mc 8,27-35
“Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27)
A primeira leitura nos apresenta o “terceiro canto do Servo de YHWH” (o nome próprio de Deus nunca devia ser pronunciado; por isso, quando ele aprece nos textos sagrados, deve ser transliterado apenas com suas consoantes, sem os sons vocálicos, que de per si não fazem mesmo parte da palavra escrita; a esse conjunto de quatro letras chamamos de “tetragrama sagrado”; onde ele aparece podemos ler “Deus” ou “Senhor”). O servo de YHWH é uma figura misteriosa que aparece no livro de Isaías. Alguém que tomará sobre si as dores do povo, que sofrerá, mas que testemunha, particularmente na perícope que ouvimos hoje, a sua plena confiança na ação divina. O servo sofredor é uma dessas figuras que só se esclarece plenamente à luz do Novo Testamento. É em Cristo que vamos poder entender de quem Isaías falava.
Hoje nos é apresentada na liturgia apenas uma parte do canto, os vv. 5-9. No v. 5 encontramos uma afirmação feita pelo próprio servo, que diz respeito à sua obediência: “O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei.” O servo sofredor se manifesta, assim, como alguém que ouve e põe em prática uma palavra recebida de Deus. Ele não recua, ainda que essa palavra seja exigente e possa conduzi-lo pelo caminho da provação e do sofrimento.
De fato, o v. 6 apresenta o sofrimento experimentado pelo servo, sofrimento esse expresso por dois verbos: “oferecer” e “não esconder-se”. O servo “oferece”, ele literalmente “dá” o seu dorso para aqueles que querem feri-lo e a sua face para aqueles que querem arrancar-lhe a barba. E ele “não se esconde”, ele não foge daqueles que querem ofendê-lo e cuspir nele.
Nos vv. 7-9a encontramos a manifestação da confiança do servo no auxílio divino. O Senhor “virá em seu socorro”, segundo o texto hebraico, ou, seguindo a versão grega, recolhida também na Neo Vulgata, e cuja tradução se alinha com a que encontramos no nosso lecionário, o “Senhor” é o seu “Auxiliador”, por isso ele não sairá humilhado. O seu rosto fica impassível como uma rocha, porque ele sabe que não será confundido. O início do v. 7 se repete inteiramente no v. 9, onde mais uma vez o servo sofredor manifesta a sua confiança absoluta de que Deus virá em seu socorro, por isso ninguém pode se fazer juiz dele.
O trecho do Evangelho de hoje é a realização do que dizíamos mais acima sobre o Servo de Deus, essa figura misteriosa do livro de Isaías, ou seja, Jesus se manifesta como o verdadeiro servo sofredor, que há de redimir o mundo com o seu sofrimento e que ressuscitará ao terceiro, sendo este último elemento o que há de próprio no Novo Testamento, pois em Isaías só se falava do sofrimento do servo e da sua exaltação por Deus, sem se falar de ressurreição.
Este trecho de Marcos aparece também nos outros sinóticos, sempre com a mesma estrutura. A primeira parte do evangelho, os vv. 27-30, apresenta a profissão de fé de Pedro. Diferentemente de Mateus, não encontramos aqui o elogio da fé de Pedro e nem a entrega das chaves. Contudo, encontramos no v. 30 o mesmo que em Lc 9,21, a proibição de contar a alguém o fato de ser Jesus o Messias. Dentro do evangelho de Marcos, no conjunto dos demais versículos onde Jesus faz a mesma proibição, encontramos aqui mais uma manifestação do “segredo messiânico”, essa característica própria do evangelista onde Jesus exige dos seus discípulos que não contem a ninguém a respeito da sua messianidade.
Muito provavelmente esse gesto de Jesus tem a ver com o fato de ele não querer ser reconhecido como um Messias aos moldes da expectativa judaica, ou seja, como um líder apenas político. Ele é, na verdade, o servo sofredor, que vai tomar sobre si o jugo que pesa sobre os homens, e vai realmente salvá-los, mas num nível que vai além do meramente temporal, porque Ele também vai ressuscitar e, assim, garantir a vida eterna a todos os que creem em seu nome.
Nessa primeira parte Jesus quer saber dos apóstolos o que pensam dele os “homens”, as multidões, os que não estão no seu círculo mais íntimo de discípulos. E deseja, particularmente, saber o que pensam dele aqueles que estão sempre com ele e dirige a sua pergunta ao círculo dos discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, em nome dos doze, toma a Palavra e afirma: “Tu és o Messias”.
Podemos trazer para a nossa realidade esse momento de Jesus com seus discípulos. As coisas não mudaram daquele tempo para hoje. Se também hoje Jesus nos perguntasse o que pensam dele as pessoas, nossa resposta seria difusa, porque difusa e confusa é a visão dos homens a respeito de quem seja Jesus. Porém o Mestre também deseja dirigir a sua pergunta a nós, que estamos com Ele e somos seus discípulos. Quem é Cristo para nós? Esta é uma pergunta fundamental a qual cada cristão deve responder no mais íntimo do seu ser. Será que, como para Pedro, também para nós Ele é o Messias, com tudo o que esse título significa no contexto do Antigo e do Novo Testamento?
Nos vv. 31-33, Jesus faz o primeiro anúncio da sua paixão. O anúncio do fato misterioso da sua paixão só pode vir depois do seu reconhecimento como Messias. Mas o pobre Pedro quer ensinar Jesus como ser Messias! É por isso que Jesus vai dizer a Pedro: “Vai para trás de mim!” Expressão muitas vezes mal compreendida, porque traduzida como “Vai para longe de mim!”. Pedro quer passar a frente e Jesus lhe mostra que o seu lugar é atrás, como discípulo, seguindo e observando o Mestre para poder fazer da sua vida uma verdadeira imitação daquilo o que é a vida do Mestre. Pedro não havia entrado ainda na lógica de Deus e, por isso, não consegue compreender o projeto salvífico do Pai manifestado em Jesus Cristo.
Os versículos finais nos mostram que para seguir o Cristo é necessário começar um caminho, “tomar a cruz” e, então, “segui-lo”. Peçamos ao Senhor a graça de olharmos com gratidão para o seu sacrifício. Da contemplação do seu sacrifício de amor, nasça em nós o desejo de também renunciarmos ao que não é de Cristo em nossa vida, a fim de vivermos unicamente para Ele, que por nós morreu e ressuscitou.