1ª Leitura: Dt 4,1-2.6-8
Sl 14
2ª Leitura: Tg 1,17-18.21b-22.27
Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23
“De livre vontade ele nos gerou, pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas.” (Tg 1,18)
Tiago nos afirma hoje, na segunda leitura, que fomos gerados pela “Palavra da Verdade”. É possível que Tiago esteja pensando aqui no Gênesis, particularmente Gn 1,1 – 2,3, o relato sacerdotal da criação, onde tudo é criado pelo poder da Palavra: “Deus disse: Haja luz. E houve luz” (Gn 1,3). O que Deus gerou pelo poder de sua Palavra foi o homem, feito à sua imagem e semelhança. Relendo o AT à luz do NT sabemos que o “lógos”, a “Palavra criadora” que estava com Deus desde o início é o seu “Verbo”, o mesmo que “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
Certa vez ouvi numa pregação feita por Dom Abade Bernardo, no Mosteiro Trapista Nosso Senhora do Novo Mundo, que o mesmo Verbo que se fez carne no seio da Virgem, fez-se de novo Verbo, para que proclamado na liturgia viesse a tornar-se carne em nossa vida. A Palavra que hoje ouvimos é uma Palavra carregada do poder Criador de Deus. Como num novo Gênesis, o Espírito do Senhor paira sobre o nosso caos e Deus envia a sua Palavra que tudo cria, que tudo ordena, que, da obscuridade, faz nascer a luz. A “Palavra da Verdade”, o Cristo Senhor, nos fala: Ele nos fala e Ele é a própria Palavra. Nós devemos ouvir sua voz, acolhê-lo em nós e permitir que Ele se faça carne na nossa vida. Aqui trata-se de uma metáfora, pois é claro que não vamos dar à luz o Verbo Encarnado, como o fez a Virgem. Contudo, se nos deixamos penetrar e fecundar pela Palavra, passamos a ser homens/mulheres-Palavra. É interessante essa expressão: ser “homens/mulheres-palavra”. A expressão não é minha, mas de nosso estimado Dom Estêvão Bettencourt, OSB, monge beneditino ilustre e venerável de nossa Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, já falecido. Ele dizia que a vida espiritual é uma ascensão: em primeiro lugar, devemos ser homens e mulheres “de palavra”; depois, progredimos e nos tornamos homens e mulheres “da Palavra”, isto é, penetrados e fecundados pela Palavra de Deus; por fim, devemos ser “homens/mulheres-Palavra”, ou seja, nossa vida deve ser um reflexo da própria Palavra de Deus, de modo que, em nossos atos, todos tenham acesso ao “Evangelho vivo”.
Adentrando mais profundamente no mistério da Palavra que hoje a Igreja nos apresenta, vejamos o que o Senhor nos fala na primeira leitura. Israel é chamado a reconhecer na Lei de Deus a fonte da sabedoria e da inteligência. Tentado, talvez, a olhar para a pseudosabedoria e a pseudointeligência dos outros povos, Israel é chamado a perceber que a verdadeira sabedoria e a verdadeira inteligência residem na Lei de Deus.
Deus dá a Lei ao povo porque o homem corre o risco de, querendo criar suas próprias leis, trilhar seus próprios caminhos, permanecer ensimesmado, sendo guiado por falsos caminhos, pelos caminhos que ele próprio julga serem os melhores e, assim, se perder, talvez, para sempre.
O autor do Deuteronômio enaltece a proximidade de Deus para com o povo ao afirmar: “… qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos?” (Dt 4,7) Um Deus tão próximo não daria aos seus filhos uma lei que visasse a sua escravidão. A Lei de Deus é a lei da liberdade, que garante a vida do povo, por isso ela deve ser guardada, na sua integridade, dela nada se deve tirar; a ela, nada se deve acrescentar.
“Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo…” É neste ponto nevrálgico que se encontra a discussão do evangelho entre Jesus e os fariseus. Os fariseus não eram de todo maus. O movimento dos fariseus surgiu num momento em que a fé de Israel corria grande perigo. O mundo grego, com a sua cultura e sua prática religiosa, contrárias à Palavra de Deus, havia se introduzido no meio de Israel. A sua influência foi tão forte, que até mesmo os sacerdotes e os anciãos foram seduzidos pelas práticas contrárias à fé israelita como podemos ler nos livros dos Macabeus.
A origem remota do grupo dos fariseus se deu, segundo alguns autores estudiosos desse tema, nesse momento de crise. Zelosos pela prática da Torah, a Lei que Deus deu a Moisés no Sinai, eles queriam o povo na obediência à mesma Lei. Todavia, nenhum enrijecimento excessivo é positivo. O pecado dos fariseus foi fecharem-se em torno da sua defesa apologética e desviante da Lei. Jesus condena diversas vezes a dureza de coração (esklerokardia), o enrijecimento doentio dos fariseus em torno da prática meramente exterior da Lei. Tal enrijecimento se tornou tão forte que os fariseus foram criando por sua conta um código legal, paralelo à Palavra de Deus, cujos preceitos eles queriam fazer remontar a Moisés.
O descumprimento dessa lei humana era equiparado ao não cumprimento de uma lei divina. Os fariseus não criticam os discípulos de Jesus por desobedecerem a Torah ou um mandamento de Moisés, mas por não seguirem o “costume dos antigos” (Mc 7,3) – esse preceito que Marcos tão bem descreve, até mesmo em minúcias, porque está escrevendo aos pagãos que não o conhecem – de lavar as mãos ao retornar da praça da pública. E como estes preceitos humanos, existiam vários outros, que foram se tornando fardos pesados.
A Lei foi tornando-se para o povo não uma ocasião de celebração da vida, mas a contínua recordação da sua fraqueza, da sua impossibilidade de cumprir todos os preceitos, da sua falência. Apegados à exterioridade, ao mero aspecto jurídico da Lei, os fariseus não somente criaram preceitos humanos que tornaram a Lei de Deus pesada e difícil de ser cumprida, mas foram criando também formas de burlar a mesma Lei, como Marcos descreve nesta perícope, mas que não aparece no nosso lecionário. A Lei de Deus manda “honrar pai e mãe”, e isso de maneira concreta, socorrendo-os, se necessário, com nossos bens. Os fariseus, criaram uma forma de burlar essa Lei: bastava afirmar que aquilo o que deveria ser usado para cuidar dos pais é corban (Mc 7,11), isto é, oferenda consagrada a Deus.
O fruto do apego à exterioridade é não perceber o sentido profundo da Lei. Jesus responde aos fariseus com a palavra do profeta Isaías: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. Hipócritas! (Mc 7,6). É assim que Jesus se refere aos seus interlocutores. O termo grego “hypokrités” era utilizado no mundo teatral. Provém do verbo “hypokrino” que, tendo o significado básico de “responder”, era utilizado no âmbito do teatro grego para se referir ao ato de recitar, declamar ou mesmo de “responder” a um diálogo que se desenvolvia no palco. O “hypokrités” era, portanto, um “ator” que, normalmente utilizando uma máscara, atuava numa cena teatral. É assim que Jesus classifica os fariseus, são como atores mascarados: vivem a Lei de forma meramente exterior, “representando uma boa figura” aos olhos dos homens, mas sem nenhum comprometimento interior e sem nenhuma abertura à conversão. Além disso, usam sua “boa figura” para “mascarar” seus próprios erros e tornam pesada a vida dos outros, exigindo do próximo o que eles, nem de longe, chegam a cumprir.
Jesus, o verdadeiro exegeta da Lei, depois de todo esse embate, nos fornece uma catequese sobre o que é, de fato, puro e impuro. Como a Palavra viva do Pai Ele não somente ensina aos fariseus que eles não entenderam nada da Palavra, mas revela que tem autoridade para levar à Palavra ao seu pleno sentido. Todas as leis de puro e impuro que havia na Antiga Aliança estão abolidas em Cristo, porque elas tinham um caráter pedagógico: fazer com que o homem percebesse a santidade de Deus e a necessidade de se purificar para entrar em comunhão com Ele.
A purificação, que outrora se realizava através de práticas exteriores, deve ser agora realizada de dentro para fora. Não é o que entra no homem que o torna impuro, mas o que sai do homem. O que entra no homem pela boca é digerido e devolvido à natureza; todavia, o que sai do homem – roubos, assassínios, fraudes, devassidão, soberba – pode causar danos irreversíveis. O que sai do homem o envenena e envenena tudo o que está à sua volta. Jesus opõe aqui à pureza legal a pureza de coração.
Que o Senhor, fonte de todo bem, como pedimos na coleta desta celebração, derrame sobre nós o seu amor, que é o Espírito Santo, a fim de que aquilo o que em nós é bom possa ser sempre alimentado e cresça cada vez mais. Que os nossos corações sejam purificados pela Palavra, o grande dom que hoje recebemos, e que deve ser por cada um guardado com solicitude.