1ª Leitura: Jó 38,1-8.11
Sl 106 (107)
2ª Leitura: 2Cor 5,14-17
Evangelho: Mc 4,35-41
Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?
Poderíamos começar nossa reflexão pelo pedido expresso na oração coleta: “…dai-nos por toda a vida a graça de vos amar e temer, pois nunca cessais de conduzir os que firmais no vosso amor.” Deus é quem nos conduz e nos “firma” em seu amor. Na liturgia da Palavra fazemos a experiência de acolher o direcionamento d’Aquele que sempre deseja nos guiar pelo caminho da vida. Por isso devemos estar atentos ao que o Senhor nos diz, conforme diz o salmista: Vou ouvir o que o Senhor Deus diz, porque ele fala de paz, ao seu povo e seus fiéis, para que não voltem à insensatez. (Sl 85[84],9).
A primeira leitura deste domingo é um pequeno trecho de Jó 38. De Jó 38,1 a 40,5 temos o primeiro “Discurso de Deus”. Jó em 30,21 se lamenta dizendo a respeito de Deus: “Tu te tornaste meu verdugo e me atacas com teu braço musculoso”. Em outras palavras, Jó se vê atormentado pelo fato de não encontrar nos seus atos motivo para ser castigado por Deus, uma vez que os seus “amigos” interpretam todo o seu sofrimento como um castigo divino. Os capítulos 32 a 37 trazem os chamados “Discursos de Eliú”, onde essa personagem procura mostrar a Jó que Deus é inacessível ao mal e não pode estar esmagando-o injustamente. Em Jó 38,1 é o próprio Deus quem toma agora a Palavra e, manifestando a Jó a sua grandeza e o seu poder, o silencia, faz com que Ele coloque a sua “confiança” na sua ação misteriosa e providente.
É de se notar o final desse primeiro discurso quando o próprio Deus diz a Jó: “O adversário de Shaddai cederá? O censor de Deus irá responder? Jó respondeu a Deus: Eis que falei levianamente: que poderei responder-te? Porei a minha mão sobre a boca; falei uma vez, não replicarei; duas vezes, nada mais acrescentarei.” (cf. Jó 40,2-5) No início do livro é a misteriosa figura de Satã que aparece como “adversário de Jó”. E agora, o próprio Jó pelo seu falar impensado torna-se “adversário de Deus”. Para não pecar pela boca, por meio de palavras precipitadas Jó deve silenciar. Mas não se trata de um silêncio qualquer. É um silêncio próprio de quem confia e se abandona nas mãos daquele em quem confia, nesse caso, o próprio Deus.
No Evangelho temos uma cena cujo pano de fundo tem alguns elementos semelhantes àqueles da primeira leitura. Os personagens agora são Jesus e os seus discípulos. Eles estão na barca e Jesus dorme. Quando uma tormenta os atinge e Jesus continua a dormir eles se perturbam e o acordam, pensam que Ele não vai fazer nada. Jesus, então, pelo poder da sua Palavra ordena o vento e o mar e se faz uma grande calmaria. É o momento de dois questionamentos. Primeiro vem o de Jesus aos discípulos? “Ainda não tendes fé?” E, logo em seguida, o que os discípulos fazem a si mesmos, depois ainda de Marcos ter destacado que eles “temeram um grande medo”: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”
Podemos traçar alguns paralelos entre a primeira leitura e o Evangelho. O primeiro deles é a situação dos discípulos que está em paralelo com aquela de Jó. Jó teme e se desespera, porque não encontra um sentido para o seu sofrimento. Os discípulos temem e, também, se desesperam, porque acham que vão perecer no meio da tempestade. Jó se sente abandonado por Deus, porque não vê da parte do mesmo Deus uma atitude que demonstre a sua presença. Os discípulos sentem-se, também, abandonados por Jesus, porque Ele “dorme sobre um travesseiro” enquanto eles estão agitados pela força da tempestade. Jó grita para Deus, reclama do seu abandono, assim como os discípulos vão despertar o mestre e perguntar se ele não se importa que eles pereçam. Por fim, Deus responde a Jó e Jó silencia, reconhece que Deus está ali e que Ele deve abandonar-se e confiar. Também no final deste trecho do Evangelho, Jesus se pronuncia e toma a Palavra. Primeiro para silenciar a tempestade e, depois, para silenciar os discípulos, mostrando a eles que assim como era necessário que Jó tivesse fé e confiasse na ação divina, também era necessário que os discípulos, que estavam com o próprio Jesus na barca, tivessem fé.
Essas leituras podem ser compreendidas em dois momentos: primeiro com relação à história humana e, depois, com relação à nossa história pessoal. Ao vermos as vicissitudes pelas quais passam a nossa sociedade no momento em que vivemos, fazemos, como fizeram outras gerações, um questionamento a Deus: “Onde tu estás?” ou ainda “Será que tens nos abandonado?” Deus não abandona jamais o homem. Diante de tantas situações difíceis de compreender, de tempestades que parecem vão fazer naufragar a barca da história, devemos confiar que Deus está presente, conduzindo a mesma história. E, se nós vivermos uma vida no “amor e temor” como dizíamos na coleta, Ele há de nos conduzir a todos a um porto mais que seguro.
O mesmo se dá no ambiente da nossa história individual. Por mais que pareça, nós não somos um barco à deriva. Deus está no barco da nossa vida. Conosco está o Cristo. Ele só parece “dormir sobre um travesseiro”, mas na verdade Ele está muito atento a tudo e, quando for realmente o momento, Ele dirá ao vento e à tempestade: “Cala-te!” E, talvez, tenha de dizer também a nós: “Ainda não tendes fé?”
Aqui está talvez o grande questionamento que a Palavra de Deus hoje nos faz. O cristão, aquele que é uma “criatura nova”, porque “está em Cristo”, como nos diz Paulo na segunda leitura, deve constantemente questionar-se sobre a sua fé. A fé não é simplesmente um compêndio de conceitos e normas, mas é sobretudo uma experiência, a experiência de um Deus vivo que caminha conosco, como caminhou com o povo de Israel através do Mar e do deserto. É a experiência de um Deus que está conosco no barco da nossa existência, conduzindo-nos através de tempestades e tormentas a um porto seguro, que ainda está invisível aos olhos do nosso corpo, mas bem visível ao olhar do nosso espírito, se temos fé. Que o Espírito Santo do Senhor nos ajude e nos faça crescer cada dia mais na virtude teologal da fé.