1ª Leitura: Jn 3,1-5.10
Sl 24
2ª Leitura: 1Cor 7,29-31
Evangelho: Mc 1,14-20
Neste terceiro Domingo do Tempo Comum, a Palavra de Deus que ressoa aos nossos ouvidos é um convite à conversão. A primeira leitura nos apresenta a pregação do profeta Jonas aos cidadãos de Nínive. O profeta fora enviado a Nínive a fim pregar a iminente destruição da cidade. Diante, contudo, da pregação do profeta, os ninivitas se convertem, abrem-se à fé, “acreditam em Deus” (Jo 3,5) e fazem penitência: vestem-se todos, do maior ao menor, com trajes de penitência e jejuam diante do Senhor. Deus então “viu” (Jn 3,10) as suas obras: como eles “voltaram dos seus caminhos maus” e, então, teve “compaixão”, desistindo de fazer o mal que havia anunciado.
Dois termos são importantes na primeira leitura: o verbo “voltar” (no hebraico: shuv)[1], muito empregado nos textos proféticos para indicar o chamado divino à conversão (Os 14,2; Jl 2,12; Zc 1,3; Ml 3,7); e o verbo que, no lecionário, é traduzido como “compadeceu-se”, o verbo hebraico niham, que pode significar “ter compaixão” e, na forma como se apresenta no texto, pode significar, também, “arrepender-se”. Diante do povo que “volta” do seu caminho, Deus também “volta” da sua decisão de impor a este mesmo povo um castigo. Em resumo: quando o homem se converte, Deus não lhe nega a sua misericórdia.
A certeza da misericórdia divina é o que motiva o homem no seu caminho de volta para Deus. Ele sabe que pode “voltar para Deus”, porque confia que este o acolherá. O Salmo 24, Salmo Responsorial desta liturgia da palavra, está permeado, particularmente nos versículos 6 e 7, do vocabulário da misericórdia: Recordai, Senhor meu Deus, vossa ternura (rahamîn) e a vossa compaixão (hesed) que são eternas! De mim lembrai-vos, porque sois misericórdia (hesed) e sois bondade (tôb) sem limites ó Senhor! Particularmente destacamos os termos que aqui aparecem traduzidos como “ternura” (rahamîn) e “misericórdia” (hesed).
O termo rahamin vem de rehem que é “entranha”, particularmente as entranhas maternas. Esse termo é traduzido algumas vezes por “compaixão”. Deus ama os homens com esse amor que brota das profundezas do seu ser. Como aqui não lembrar o profeta Isaías? Is 49,15: “Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti.”
O termo hesed, por sua vez, algumas vezes traduzido como amor, compaixão, misericórdia, bondade, é um termo bastante recorrente nos Salmos (aparece cerca de 127 vezes). Ele é o contrário da “ira”. Onde esperaríamos que Deus manifestasse a sua “ira”, ele manifesta sua “misericórdia”, sua “bondade”, seu “amor”. Muito sumariamente podemos dizer que hesed é o amor gratuito de Deus pelo homem. O homem jamais pode retribuir, na mesma medida, esse amor. E a experiência desse amor totalmente livre e gratuito, deve levá-lo a uma atitude semelhante para com o seu próximo.
O Evangelho, coração da liturgia da Palavra, nos apresenta o início da pregação de Jesus Cristo. Marcos a resume em um versículo: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (cf. Mc 1,15).
Para designar o “tempo” Marcos utiliza o termo kairós, que indica não o tempo transcorrido, quantificável, mas o “momento, o tempo designado, a hora apropriada”. O tempo fixado por Deus chegou, em Cristo o seu Reino se aproximou. Ainda nem todos se dão conta, mas em Cristo, o Reino de Deus, que há de se estabelecer de modo pleno no fim dos tempos, começou já a se manifestar. Diante desta novidade, a dupla atitude exigida do homem é a conversão e a fé: Convertei-vos e crede no Evangelho!
O verbo que aqui é traduzido como “convertei-vos” é o verbo grego metanoéo. Em sentido profano, esse verbo significa uma “mudança de opinião, de pensamento”. No contexto do Evangelho devemos interpretá-lo em sentido mais profundo. Trata-se de uma mudança radical da própria vida, orientando-a para Deus. Claro que isto inclui, naturalmente, a mudança do pensamento. Contudo, é mais que isso. A mudança de direção da própria vida deve se manifestar de modo prático, nas atitudes que permeiam o dia-a-dia.[2] Neste sentido, o verbo metanoéo muito se assemelha ao verbo “voltar/shuv” que aparece na primeira leitura de hoje e que, como dissemos acima, é muito utilizado pelos profetas para indicar o “retorno para Deus”, o abandono dos maus caminhos e das obras más.
Além do chamado à conversão, a pregação do Cristo inclui o chamado à fé: Crede no Evangelho. As duas coisas estão interligadas: fé e conversão. É a fé, a confiança em Deus, que me leva a aceitar as exigências do Evangelho e a percebê-las como o caminho da felicidade verdadeira. Por outro lado, a fé autêntica deve levar o homem naturalmente ao caminho da conversão, ao abandono das obras más e dos caminhos tortuosos, para seguir livremente o Cristo.
Logo depois da apresentação, de modo sintético, porém muito profundo, da pregação de Jesus, Marcos apresenta o chamado dos primeiros discípulos: Simão, André, Tiago e João. A colocação do chamado dos primeiros discípulos logo depois da convocação que Jesus faz a viver a fé e a conversão, poderia ser entendida como uma forma de dizer que o discípulo é aquele que está disposto a seguir radicalmente o Cristo, entrando nesse caminho de conversão e de fé.
É a nós que a Palavra de Deus, em toda a sua riqueza e profundidade se dirige neste Domingo. Devemos também acolher o convite do Cristo e entrar no caminho da conversão e da fé. A misericórdia infinita de Deus que sempre nos acolherá, se a Ele nos voltarmos de todo coração, é a nossa principal motivação nesse caminho de retorno e reconciliação com o Senhor (Jr 29,13-14).
[1] A correta transliteração é ṧûb.
[2] Cf. GNILKA, J. El Evangelio Según San Marcos. V. I. Salamanca: Sígueme, 2005, pp. 77-78.