2Rs 5,14-17
Sl 97
2Tm 2,8-13
Lc 17,11-19
Jesus, Mestre, tem compaixão de nós (cf. Lc 17,13)
O domingo é o dia por excelência da escuta da Palavra de Deus. Nossa fé nos ensina que “A Igreja cresce e se constrói ao escutar a Palavra de Deus, e os prodígios que de muitas formas Deus realizou na história da salvação fazem-se presentes, de novo, nos sinais da celebração litúrgica, de um modo misterioso, mas real” (cf. OLM 7).[1] Na segunda leitura de hoje Paulo dá testemunho de que, embora ele esteja em cadeias, a “Palavra não está algemada” (cf. 2Tm 2,9). Deus, na sua bondade, faz com que sua Palavra se propague cada vez mais: ela chega até nossos ouvidos e nós somos, então, responsáveis, por levá-la até nossos irmãos do modo como nos for possível.
A primeira leitura deste domingo nos coloca diante da cura do sírio Naamã. Este pagão ouve dizer que na terra de uma das suas servas existe um homem de Deus, que poderia curá-lo da sua enfermidade: a lepra. Na expectativa de receber a graça da saúde, esse homem vai até Israel e se encontra com o dito “homem de Deus”, o profeta Eliseu. Ele lhe ordena que realize um gesto simbólico: mergulhar sete vezes no Jordão (cf. 2Rs 5,10). Naamã, que espera talvez algum tipo de espetáculo envolvendo sua cura, ou talvez alguma coisa mais difícil que ele teria que realizar, fica raivoso e, num primeiro momento, se retira, incrédulo. Contudo, diante da insistência de seus servos, que o amavam e viam seu sofrimento, ele realiza o que o profeta lhe havia ordenado e fica curado. O sinal tinha uma função simbólica, porque o poder de cura está no Senhor e não nas águas do rio. Mas era necessário que aquele homem se tornasse humilde, e se submetesse à voz de Deus que lhe falava por meio do profeta.
A cura produz em Naamã a ação de graças. Primeiro, ele quer agradecer ao profeta, mas este recusa veemente pois, afinal, a glória pertence somente a Deus, verdadeiro realizador da cura. Parece que internamente Naamã intui isso, pois ele pede para levar um pouco da terra de Israel, a fim de erguer na sua pátria um altar para o Senhor. O coração de Naamã se converteu para o Deus de Israel e ele deseja só ao Senhor prestar culto e não mais aos seus deuses.
Aqui vemos a verdadeira cura que Naamã recebeu: a cura da sua incredulidade. Ele servira, antes, a deuses que não eram, de fato, deuses. Chegou a duvidar no seu coração que um simples banho de rio ordenado pelo profeta pudesse lhe trazer algum proveito. Contudo, diante do grande sinal que foi a cura da sua enfermidade, ele acreditou, teve fé. Naamã pediu uma coisa, e ganhou duas: pediu a cura do corpo, e ganhou, além desta, a cura do seu espírito. O salmo de hoje realiza-se, assim, na vida de Naamã: o “Senhor fez conhecer a salvação, e às nações, sua justiça” (cf. Sl 97,2).
Cena semelhante vemos no Evangelho: dez leprosos vêm ao encontro de Jesus suplicando a sua misericórdia. A lepra os segregava severamente, deixando-os afastados do convívio familiar e social, numa espécie de morte em vida. Lv 13,45-46 afirma: “O leproso portador desta enfermidade trará suas vestes rasgadas e seus cabelos desgrenhados; cobrirá o bigode e clamará: ‘Impuro! Impuro!’ Enquanto durar a sua enfermidade, ficará impuro e, estando impuro, morará à parte: sua habitação será fora do acampamento.” Os dez leprosos reconhecem em Jesus um “mestre” e, tendo talvez ouvido falar dos sinais que ele realizava, suplicam a graça a cura. Mantem-se, contudo, “distantes” (cf. Lc 7,12), conforme ordenava a Lei.
Lucas coloca em destaque, no início do v. 14, que Jesus os “viu”. O olhar de Jesus evoca a ideia da compaixão.[2] Já no AT o tema do Deus que vê e tem compaixão aparece em muitas passagens: Ex 3,7 (Deus que “viu” a miséria do seu povo no Egito); Sl 32(33),13-22 (do céu, Deus olha todos os homens e tem compaixão). Em Lucas, essa expressão se repete em outros lugares: em Lc 5,20 Jesus “vê” a fé dos que introduzem o paralítico pelo telhado; em Lc 13,13 Jesus “vê” a mulher encurvada e cura sua enfermidade. Não se trata, pois, de um simples olhar, mas do olhar divino, que sonda os homens, conhece o seu interior, e tem compaixão dos que sofrem.
Jesus não realiza em favor dos leprosos nenhum gesto específico, mas ordena que se apresentem aos sacerdotes. Segundo Lv 13,44, o sacerdote era o responsável por diagnosticar a doença da lepra e por declarar o seu portador um homem “impuro”. Lv 14, por sua vez, descreve um detalhado ritual que deve ser observado por quem é declarado, pelo mesmo sacerdote, como curado da lepra. Ao ordenar que eles caminhem para o sacerdote que deve constatar sua cura, antes mesmo que esta aconteça, Jesus testa a sua fé, do mesmo modo como Eliseu testou a fé de Naamã mandando-o banhar-se no Jordão.
No caminho, eles são “purificados”, contudo, apenas um deles retorna. A cura só produz seu efeito mais singular – a ação de graças e a profissão de fé – em um dos que foram miraculados. Um “samaritano”, ou seja, alguém que não era bem visto do ponto de vista religioso pelos judeus mais observantes, é o que retorna. Ele não precisa mais ir aos sacerdotes, pois percebe que a sua cura é uma realidade e que o realizador de tal milagre não é qualquer mestre. Ele retorna a Jesus, no caminho vai “glorificando a Deus em alta voz”. Antes ele gritava, porque queria ser ouvido enquanto se mantinha à distância, era um grito de necessidade. Agora ele “louva em alta voz”, seu grito não é mais de necessidade, mas de reconhecimento, de ação de graças, uma ação de graças que ele também quer que chegue aos ouvidos de todos, a fim de que reconheçam o Deus que realizou nele maravilhas.
Lucas diz que ele realiza gestos de veneração: atira-se aos pés de Jesus; coloca seu rosto na terra; e faz a Jesus uma ação de graças. É interessante notar uma diferença nos verbos que Lucas utiliza: a Deus, o leproso “louva” (doxadzo) e diante de Jesus ele “agradece” (eucharistein). Acredita-se que não se trata ainda daquele reconhecimento que Jesus vai receber da parte dos discípulos depois da sua ressurreição (Lc 24,52),[3] contudo, o evangelho põe em evidência não somente a conexão que existe entre milagre e ação de graças, mas também destaca a capacidade que este “samaritano” tem de reconhecer a Jesus como dispensador de tal graça. Nesse samaritano, como também na samaritana que Jesus encontra no poço de Jacó (cf. Jo 4), se antecipa o anúncio do evangelho que deve ir para além das fronteiras de Israel.
O evangelho é concluído com algumas perguntas retóricas da parte de Jesus, para as quais as respostas são, obviamente, negativas. Jesus se admira da incapacidade que os outros miraculados tem de reconhecer o dom recebido e de oferecer a Deus a sua ação de graças. É o “estrangeiro”, o “samaritano”, que reconhece o dom e glorifica a Deus, do mesmo como um estrangeiro, na primeira leitura (Naamã), passa da simples cura à fé no Deus de Israel. As palavras de Jesus ao samaritano curado revelam que algo de mais profundo aconteceu nele. Dez foram “purificados”, mas só ele foi realmente “salvo”. Nove ficaram no nível inicial de fé e receberam o milagre; este homem, contudo, passou ao nível sobrenatural e encontrou a salvação. Jesus ordena que ele se levante e vá: o que estava morto na enfermidade, agora está como que ressuscitado, pelo poder da Palavra de Jesus. Ele deve se tornar, pois, um proclamador das maravilhas que Deus operou em seu favor.
Vários elementos desta liturgia da Palavra podem aplicados à nossa vida pessoal. Jesus também nos vê, e seu olhar é sempre de compaixão. Se elevamos para Ele nossa voz, ele, na sua infinita misericórdia, também nos ouvirá e nos dará o que nos for mais conveniente em cada momento da nossa vida. Contudo, é importante notar como se encerra o trecho do evangelho: a centralidade está na fé. O milagre e a capacidade de agradecer ocupam grande parte da cena, mas o mais importante é a fé que trouxe “salvação” para o leproso. Peçamos ao Senhor, em cada liturgia, que ele renove nossa fé. Podemos receber muitos milagres e nem assim chegar ao nível de fé que nos leva à salvação que Jesus nos conquistou com sua Páscoa. Tais milagres seriam inúteis, pois só nos trariam uma vida boa aqui neste mundo. A fé, ao contrário, nos transporta para além, nos faz ver o infinito. Quando temos fé, o fantasma das dificuldades vai embora, e somos capazes de ficar firmes, mesmo quando nosso mundo desmorona. Peçamos ao Senhor misericordioso, o Cristo Deus, que nos fortaleça na fé.
[1] OLM é a abreviação de “Ordo Lectionum Missae”, ou seja, a “Introdução ao Lecionário” da Missa.
[2] Cf. BOVON, F., El Evangelio según San Luvas, V. III, p. 191.
[3] Cf. BOVON, F., El Evangelio según San Luvas, V. III, p. 193.