Sb 7,7-11
Sl 89
Hb 4,12-13
Mc 10,17-30
“Só uma coisa te falta… Vem e Segue-me” (Mc 10,21)
A assembleia dominical é o lugar privilegiado para ouvirmos a Palavra. Na expressão de São Gregório Magno, é nas Escrituras que podemos conhecer o “coração de Deus”. O mesmo São Gregório afirma que é na comunidade que podemos captar um sentido mais profundo da Palavra que às vezes não captamos na nossa oração pessoal com a mesma Palavra. Por isso, desde os primórdios, a Igreja considera a celebração dominical o lugar privilegiado para se ouvir a Palavra. É ela, a Palavra de Deus, que nos aponta o “bem que devemos fazer”. Na oração coleta deste domingo esta é a súplica: que a graça de Deus nos preceda e acompanhe para que estejamos atentos ao bem que devemos fazer. Este bem que devemos fazer nos é dado a conhecer na meditação, na escuta atenta da Palavra.
A primeira leitura nos apresenta a Palavra de Deus como uma “espada de dois gumes”. O autor sagrado usa três adjetivos para se referir à Palavra no v. 12: em primeiro lugar, a Palavra é “viva”, plena da vitalidade do próprio Espírito que a inspirou. Não é letra morta, mas é Palavra “viva”, pois dela se diz que, sobretudo na liturgia, ainda está sendo anunciada pelo próprio Cristo (SC 7); ela é “eficaz” ou “cheia de energia” ou, mais precisamente, cheia da energia do Espírito Santo que faz com que ela se torne presença de Cristo-Palavra na assembleia, que se reúne para celebrar os divinos mistérios; ela é, por último “cortante” como uma “espada de dois gumes”. É a Palavra de Deus quem nos revela o bem que devemos fazer, como dizíamos no início, mas é ela também que nos revela a nós mesmos e é ela quem nos julga (cf. v. 12). Ao ler o v.13 poderíamos nos lembrar do Sl 138: nada está oculto diante da Palavra, assim como nada está oculto aos olhos de Deus. Deus vê tudo, sonda tudo, e a Palavra revela tudo. Daí à necessidade de continuamente nos expormos à Palavra. Nós precisamos dessa espada cortante que nos ajuda a ver o que em nós é ou não conforme à vontade do Salvador.
A primeira leitura é um trecho do livro da Sabedoria. Aqui a voz é dada ao rei Salomão que faz o seu elogio da sabedoria. Podemos ler estes versículos em união com a oração atribuída ao rei Salomão para pedir a Sabedoria (cf. Sb 9) e ainda com 1Rs 3,6-9, onde Salomão pede a Deus um “coração que escuta”. O elogio à sabedoria nesta perícope é concluído com a afirmação “Todos os bens me vieram com ela, pois uma riqueza incalculável está em suas mãos” (cf. Sb 7,11). Salomão podia pedir a Deus o que quisesse, mas pede somente um “coração que escuta”, sem dúvida, um coração “que escuta a Palavra de Deus”, nela medita e se torna, assim, sábio. Todos os outros bens vieram para Salomão com a sabedoria. Eis aqui uma lição também para nós cristãos a respeito do que devemos pedir a Deus. Já Tg 4,3 nos alerta que não recebemos o que pedimos porque pedimos mal, somente com o intuito de saciar os nossos prazeres. Aqui a Palavra de Deus nos aponta um pedido excelente e que sempre será atendido por Deus: a sabedoria. Devemos pedir a sabedoria para sabermos o que verdadeiramente constitui um “bem” na nossa vida.
Essa sabedoria faltou, talvez, à personagem do Evangelho que interpela Jesus a respeito do que deve fazer para ganhar a vida eterna. Essa mesma perícope aparece em Mt 19, 16-22 e Lc 18,18-23 com algumas diferenças. Em Mateus Jesus é apenas chamado de “mestre” e não de “bom mestre” como em Marcos. A pergunta sobre a vida eterna é que vem acompanhada pelo adjetivo “bom”. A personagem também identificada em Mateus com um jovem (em grego: neanískos). Em Lucas, trata-se de uma pessoa já mais velha. Quando instado por Jesus a seguir os mandamentos, a personagem afirma que já vem fazendo isso desde a sua “juventude” (cf. Lc 18,21), assim como acontece em Marcos (10,20). Também em Lucas Jesus é chamado de “bom mestre”.
A estrutura dos três relatos, todavia, é similar. Alguém se aproxima de Jesus, que assume a posição de um mestre, para saber o que deve fazer a fim de alcançar “a vida eterna”. Jesus aponta o caminho dos mandamentos. Todavia, essa pessoa que aborda Jesus já tem seguido esse caminho. Jesus aponta, então, o algo a mais: Vender tudo o que se tem; distribuir isso aos pobres; descobrir que no céu está guardado um tesouro; seguir Jesus. É nesse momento, que essa pessoa que se aproximou de Jesus e que era muito rica ficou triste e foi-se. As riquezas falaram mais alto. Que paradoxo! Salomão podia pedir riquezas, mas se encantou com a sabedoria e, nela, encontrou tudo. Esta pessoa que aparece no Evangelho está diante daquele que é a própria Sabedoria e se entristece por ter que deixar tudo para segui-lo. Para seguir Jesus é preciso deixar de lado a riqueza. Trata-se, todavia, de descobrir qual é a riqueza que me atrapalha a seguir Jesus para ter a coragem de deixá-la. Nesse discernimento, só a luz da Palavra de Deus pode me ajudar.
A última parte do evangelho trata da recompensa que está reservada para aqueles que literalmente “deixaram tudo”. A recompensa prometida por Jesus é o cêntuplo já aqui e, no mundo futuro, a vida eterna. Quanto temos olhos espirituais podemos perceber já o cêntuplo aqui. Não do ponto de vista quantitativo talvez, mas do ponto de vista qualitativo. Todavia, a promessa mais contundente de Jesus é a vida eterna. Outros caminhos poderiam nos garantir talvez um lucro intramundano, mas só Jesus nos oferece a vida eterna como recompensa. Poderíamos nos recordar aqui de João 6,67-69. Quando muitos abandonam o discipulado de Jesus porque acham que a sua palavra é demasiado dura, Jesus não a modifica para persuadir os outros discípulos a permanecerem com Ele. Pelo contrário. Jesus vai se dirigir aos doze e vai perguntá-los se também não querem ir embora. Pedro, toma a frente do colégio apostólico e responde: “Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna…” (cf. Jo 6, 68abc).