Gn 3,9-15
Sl 129(130)
2Cor 4,13 – 5,1
Mc 3,20-35
No Senhor toda a graça e redenção
O Domingo sempre foi considerado pelos cristãos como o “Dia do Senhor” e como o “Senhor dos Dias”. Chamado pelos primeiros cristãos de “oitavo dia”, ganhou o status de “dia escatológico”, ou seja, dia que antecipa o dia sem ocaso no qual estaremos para sempre unidos ao Senhor.
Neste dia celebramos a Ressurreição do Cristo e a segunda leitura de hoje nos recorda que a ressurreição do Senhor é penhor da nossa própria ressurreição, porque estamos “certos de que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará também com Jesus e nos colocará ao seu lado” (cf. 2Cor 4,14). É por isso que, segundo Paulo, “não desanimamos” (cf. 2Cor 4,16). Ainda que exteriormente carreguemos os sinais da caducidade da nossa existência humana, sujeita à doença e à morte, como consequência do pecado original (ver primeira leitura), sabemos que o homem interior se renova. Se, para o homem exterior, cada dia é “um dia a menos”, porque se aproxima o seu fim, para o homem interior, por sua vez, cada dia é “um dia mais próximo” da glória que há de ser revelada em nós.
A primeira leitura nos apresenta o drama do pecado original. Seduzido pelo mal, acreditando poder levar uma vida autônoma, independente de Deus, o homem “come do fruto” que lhe era proibido comer. Sua primeira reação é “esconder-se de Deus”. Deus, contudo, não abandona o homem. Deus desce ao jardim e procura Adão. O pecado terá suas consequências, mas Deus promete ao homem a salvação que virá: “Então o Senhor Deus disse à serpente: (…) Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (cf. Gn 3,14a-15). Em virtude disso, o salmista podia cantar: “No Senhor se encontra toda graça e redenção. Ele vem libertar a Israel de toda a sua culpa” (cf. Sl 129[130],7b-8).
Os Padres da Igreja costumam chamar essa passagem do Gênesis de “Proto-Evangelho”. A salvação que haveria de nos ser dada em Cristo é aqui já anunciada. Com muito mais propriedade, fazemos nossas as palavras do Salmista, uma vez que, em Cristo, Deus veio até nós e, de fato, nos libertou do pecado e da morte, manifestando-nos sua “graça” e “copiosa redenção”.
No evangelho contemplamos a ação salvífica do Cristo, que se manifesta seja pela sua pregação “cheia de autoridade”, seja pelo seu poder de curar os enfermos e expulsar os demônios.
Podemos destacar três momentos dentro da perícope deste domingo. Cada uma destas partes é marcada pela presença de um grupo específico. Depois de, no v. 20, introduzir o relato, Marcos nos fala dos “parentes de Jesus”, chamados genericamente de “os da parte dele”, “os seus” (cf. v. 21). Estes ouvem falar da imensa atividade de Jesus e vêm porque acreditam que Ele está “fora de si”.
Um segundo momento abre-se no v. 22, quando chegam os “escribas de Jerusalém”. Estes afirmam que os exorcismos realizados por Jesus são feitos porque Ele teria aliança com os demônios. Jesus responde a tal acusação primeiro com a imagem do “reino dividido” (vv. 24-26) e depois com a pesada acusação de que “o pecado contra o Espírito Santo” é um pecado eterno, sem perdão (vv. 28-30).
Dentro do contexto da perícope, o pecado contra o Espírito Santo consiste em atribuir ao demônio o que é obra de Deus e, assim, rejeitam o sinal da salvação que é realizada em Cristo e que está “simbolizada”[1] nos exorcismos realizados por Jesus. O Catecismo no n. 1864 define o “pecado contra o Espírito Santo” como a recusa a acolher o perdão e a misericórdia de Deus. Essa recusa, tal qual aquela dos contemporâneos de Jesus que não aceitavam que era pelo poder de Deus que Ele expulsava os demônios, pode levar à impenitência final.
Entre esses dois momentos da resposta de Jesus encontra-se a importante afirmação do v. 27: Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa. Essa mesma afirmação é repetida em Mt 12,29 e Lc 11,21-22, sendo que, em Lucas, o evangelista fala de um “homem mais forte”, que entra e toma os bens do homem forte. Jesus é este “mais forte”, que amarra o forte, o demônio, roubando-lhe aqueles que ele fizera cativos pela sedução do pecado. Assim Jesus demonstra que é por poder divino e mais, é como manifestação da sua própria divindade e autoridade que Ele expulsa os demônios. Seja a “expulsão dos demônios” sejam as “curas” que Jesus realiza nos evangelhos, elas são uma demonstração visível da realidade invisível: a divindade do próprio Senhor, o “mais forte”, capaz de destruir as obras do maligno.
Por fim, a perícope evangélica deste domingo nos apresenta uma terceira parte da cena, marcada pela chegada da “mãe e dos irmãos” de Jesus no v. 31. Ao afirmar que sua mãe e seus irmãos são, na verdade, aqueles que “fazem a vontade de Deus” Jesus não está diminuindo o valor dos laços familiares, mas está, sobretudo no caso de Maria, demonstrando o seu grande valor porque, sendo mãe, fez-se também discípula e discípula perfeita. Assim Jesus demonstra que, na comunidade dos filhos de Deus, os laços mais fortes são outros. Não são os laços sanguíneos os mais significativos, mas sim o grande laço da fé, que nos leva a “fazer a vontade de Deus”.
Neste Domingo, elevemos a Deus a nossa ação de graças, porque Ele, na sua infinita misericórdia, não abandonou a humanidade no pecado, mas enviou-nos o seu Cristo, Verbo Eterno feito carne, que nos abriu as portas da redenção.
Peçamos, por fim, a graça de sermos verdadeiramente seus irmãos, realizando em tudo, com o auxílio que nos vem do Alto, a vontade do Pai que está nos céus.
[1] “Simbolizada” não quer dizer aqui não-real. É importante esclarecer isso para que não se pense, equivocadamente, que os exorcismos realizados por Jesus não eram reais.