Dt 5,12-15
Sl 80 (81), 3-4.5-6ab.6c-8a.10-11b
2Cor 4,6-11
Mc 2,23 – 3,6 ou 2,23-28
O Filho do Homem é Senhor também do Sábado (Mc 2,28)
O Evangelho deste domingo nos apresenta Jesus tratando de uma questão muito delicada para o mundo judaico: o Sábado.
Como podemos depreender da primeira leitura, o “sábado” era uma instituição fundamental para Israel. O texto do Deuteronômio o coloca em relação com a experiência de libertação do Egito: “Lembra-te de que foste escravo no Egito e que de lá o Senhor teu Deus te fez sair com mão forte e braço estendido. É por isso que o Senhor teu Deus te mandou guardar o sábado” (cf. Dt 5,15). Este deveria ser um dia de descanso e de louvor, dedicado a uma “assembleia santa”, porque é o “Sábado de ou para YHWH” (cf. Lc 23,3).
Os fariseus cuidavam para que esta “instituição”, o sábado, fosse bem preservada pelos israelitas. Assim, além dos textos escriturísticos, começaram a surgir outros textos, frutos das reflexões e disputas entre os rabinos, que visavam orientar os fieis a respeito de como viver esse “repouso sabático”.
Contudo, o legalismo começou a tomar conta do coração de muitos. No zelo por observar a Lei, o sentido da mesma Lei acabou sendo deturpado. Aí está o ponto de crise entre Jesus e os fariseus. Jesus não é contra o sábado, afinal ele mesmo afirma em Mt 5,17 que não veio “destruir a Lei ou os profetas”, mas veio levá-los a seu “pleno cumprimento”. O sentido do verbo utilizado em Mt 5,17 é “tornar cheio/pleno”. Jesus veio ensinar o sentido pleno da Lei, mostrar o seu verdadeiro Espírito, e assim fazer com que ela deixasse de ser um fardo, como havia se tornado para muitos em Israel, e se tornasse um caminho de união com Deus.
O evangelho nos coloca diante de duas cenas. A primeira vem descrita em Mc 2,23-28. Trata-se do episódio das espigas arrancadas em dia de sábado. O mesmo episódio é atestado em Mt 12,1-8 e Lc 6,1-5. Os fariseus criticam Jesus porque os discípulos dele estão arrancando espigas em dia de sábado. Os sinóticos concordam no uso do verbo grego tillo para caracterizar a ação dos discípulos. Este verbo não significa colher como quem está trabalhando num campo. Ele significa recolher alguma coisa uma a uma, arrancar. Ou seja, os discípulos não estão fazendo uma “colheita”, não se trata de um trabalho, mas sim de uma necessidade. Eles caminhavam acompanhando o mestre e, provavelmente tendo fome, porque em Mt 12,1 o evangelista afirma que eles arrancavam as espigas e as comiam, começaram a “arrancar” tais espigas.
Jesus se defende e defende os seus discípulos lançando mão de um exemplo do grande Davi, que encontramos em 1Sm 21,2-7. Também Davi, numa hora de necessidade, “descumpriu” de certa forma a Lei. Passando por um Santuário e tendo fome, pediu ao sacerdote pão. Este, não tendo o que lhe oferecer, lhe deu os pães da proposição: pães que eram colocados diante de YHWH e que só os sacerdotes podiam comer, depois que fossem retirados e substituídos por outros.
A questão termina com duas afirmações contundentes de Jesus. A primeira está no v. 27: O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”. Uma afirmação semelhante pode ser encontrada no ambiente judaico. Um dito atribuído ao Rabi Simeão Bem Menasya, viveu em finais do século II d.C., afirma o seguinte: O sábado é que foi entregue a vós; não fostes vós que fostes entregues ao sábado. Alguns admitem que, embora o dito tenha sido escrito no século II d.C., ele pode ser bem mais antigo, talvez do tempo dos Macabeus.[1] Esse dito, contudo, previa situações onde a vida humana estava em risco. Ao utilizá-lo nesse contexto, Jesus amplia o seu sentido, mostrando que a lei do sábado não pode ser um fim em si mesma. Os seus discípulos estavam apenas saciando sua fome, e isso não era uma forma de violar o sábado. Isso em nada feria a sua busca por uma comunhão com Deus.
A segunda afirmação de Jesus está no v. 28: Portanto, o Filho do Homem é Senhor também do Sábado. Essa afirmação tem um caráter fortemente cristológico. Jesus se proclama “Senhor”, título reservado no AT só para Deus: YHWH é o único Kyrios (Senhor). Não somente isso. Jesus se proclama Senhor “também” ou “até do sábado”, segundo Marcos. Com isso, Jesus manifesta sua qualidade de intérprete autêntico da Lei. Só Ele pode ensinar o seu sentido profundo e indicar o modo exato de cumpri-la.
Esse ensinamento sobre o sábado vai continuar na segunda parte do evangelho. Em Mc 3,1-6 temos o episódio do homem com a mão seca. Nos outros sinóticos, o episódio também está na continuação daquele das espigas colhidas em dia de sábado (cf. Mt 12,9-14 e Lc 6,6-11).
Jesus entra “de novo” na sinagoga de Cafarnaum, onde Ele já havia ensinado “com autoridade” (cf. Mc 1,21-28). Havia na sinagoga um homem com a mão seca. Segundo um escrito apócrifo, o chamado “Evangelho dos Hebreus”, citado por São Jerônimo em seu Comentário a Mateus, este homem teria dito a Jesus: “Eu era pedreiro, e ganhava com as minhas mãos o meu sustento. Te peço, Jesus, que me devolvas a saúde, a fim de que eu não me veja na necessidade desonrosa de ter que mendigar minha comida.”[2] O evangelho de Marcos, nem os outros sinóticos, nos remetem tal pedido da parte do homem da mão seca. Contudo, podemos imaginar que tal enfermidade de fato lhe impossibilitava o exercício do trabalho e das tarefas mais comuns do dia a dia.
Existe um grupo dentro da sinagoga, que também é citado por Marcos: aqueles que observam Jesus com o intuito de ver se ele curaria em dia de sábado, a fim de condená-lo.
Jesus conhece os corações e sonda os pensamentos. Por isso, ele conduz o homem para o centro, a fim de que todos possam ver o milagre e compreender o ensinamento, que é o mais importante nessa cena.
No v. 4 Jesus coloca uma questão para os que estão na sinagoga: É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer? De fato, na tradição rabínica, se uma vida estava em jogo, era possível quebrar o repouso sabático, como vimos acima. Contudo, aqui o homem não corre risco de vida, o que torna a questão mais difícil. Mais difícil ainda é responder a esta pergunta depois do paralelo criado por Jesus: “fazem o bem” / “fazer o mal” está em relação direta com “salvar uma vida” / “matar”. No dito de Jesus, “fazer o bem” equivale a “salvar uma vida”. Não fazer o bem, por sua vez, equivale a “fazer o mal” ou “matar”. Não existe meio termo. Jesus amplia o entendimento a respeito do sábado. O repouso sabático não pode ser quebrado só se alguém corre risco de vida. Ele pode ser quebrado se o que está em jogo é “fazer o bem” a alguém, como neste caso, em que Jesus se mostra como o grande benfeitor desse homem, devolvendo-lhe a saúde e a capacidade de desenvolver suas atividades.
Jesus fica cheio de tristeza, por causa da “dureza de coração” de coração deles. A mesma dureza de coração que o salmista canta como uma lamentação de YHWH diante do povo que não quis ouvir sua voz: Meu povo não ouviu a minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos! (cf. Sl 80[81],12-13). Estes versículos fazem parte do Salmo Responsorial deste domingo, mas não são cantados ou proclamados na liturgia.
Por fim, Jesus cura o homem. Contudo, o mais importante na cena não é a cura em si, embora esta tenha um grande significado. O centro da cena está no ensinamento de Jesus a respeito do sábado. O mais importante é o seu desejo manifesto de ensinar aos homens como “cumprir” de modo perfeito a Lei. Mais uma vez retornamos a Mc 2,28, onde Jesus se autoproclama como “Senhor do Sábado”.
Marcos afirma, por fim, em 3,6 que, depois deste duplo episódio, “os fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo”. Esses dois grupos, opostos entre si, se aliam com uma finalidade comum: matar Jesus. E isso porque Ele se manifesta como o verdadeiro “exegeta da Lei”. Este é um ponto alto da auto-revelação de Jesus no Evangelho de Marcos. Ele se mostra como o verdadeiro intérprete da Lei e, assim, liberta os homens de interpretações demasiado estreitas, que deformam a Lei da Vida, que é a Palavra de Deus, que deve “Uma luz para os nossos passos” (cf. Sl 118[119],105).
Devemos aprender com Cristo o modo correto de observar e viver a Lei. O Evangelho é a norma retíssima que deve sempre nos orientar. No Evangelho aprendemos que a Lei não é um fim em si mesma, mas um caminho para vivermos uma comunhão plena com o Senhor. Que Ele mesmo nos ajude, com a luz do seu Espírito, a saber discernir em cada momento da vida o modo justo de viver plenamente a Lei.
[1] Gnilka. El Evangelio según Marcos. Vol. I, p.143.
[2] Gnilka. El Evangelio según Marcos. Vol. I, p.148.