Pe. Fabio da Silveira Siqueira
Esta pergunta é muito bem respondida por São Cirilo de Jerusalém, na sua Catequese 16 sobre o Espírito Santo, particularmente no trecho que se encontra na Patrística Grega de Migne, volume 33, colunas 941 (texto grego) e 942 (texto latino). Este texto é lido no Ofício das Leituras da segunda-feira da sétima semana da Páscoa, e diz:
Ele vem com o amor entranhado de um irmão mais velho: vem para salvar, curar, ensinar, aconselhar, fortalecer, consolar, iluminar a alma de quem o recebe, e, depois, por meio desse, a alma dos outros.
Este texto pode ser dividido em duas partes: primeiro ele nos fala a respeito do modo como nos vem o Espírito do Senhor; depois ele nos ensina o que esse Espírito Santo quer realizar e, de fato, realiza em nós.
Na Liturgia das Horas, encontramos o texto assim traduzido: Ele vem com o amor entranhado de um irmão mais velho. O texto grego, por sua vez, diz assim: Κηδεμόνος γνησίου σπλάγκα έχον έρχεταί. Poderíamos, então, traduzir este texto também da seguinte forma: “Ele [o Espírito Santo] vem portando ou possuindo o amor entranhado de um tutor/defensor legítimo”. O termo splanka, que aqui traduzimos por amor, significa literalmente “entranhas”, ou o “seio materno”, o “ventre da mãe”. Em sentido figurado, pode ser traduzido como “coração” ou, até mesmo como “alma”, enquanto esta é compreendida como sede dos afetos, da ternura, do caráter.[1] Nos lembra os termos hebraicos “rehem” e “rahamîn”, recorrentes no Antigo Testamento. O primeiro significa o “ventre materno” e o segundo é muitas vezes traduzido como “misericórdia”, aparecendo juntamente com o termo “hesed” (amor/compaixão) e indicando primariamente a sede deste “sentimento de amor, de misericórdia”, ou seja, o interior, “as entranhas” do ser humano.[2] Nos lembra, também, o verbo splanknidzomai, utilizado algumas vezes nos Evangelhos para expressar a misericórdia de Jesus, como no caso do seu encontro com a viúva de Naim (Lc 7,13).
É cheio dessa misericórdia, desse amor que vem do profundo de si mesmo, que o Espírito Santo vem a nós, porque Ele é o próprio amor. Assim como o Pai, na sua misericórdia, enviou-nos o Filho, Nosso Salvador, e o filho, também movido por uma imensurável misericórdia, foi à cruz por nós e Ressuscitou, abrindo-nos as portas da salvação eterna, o Espírito Santo do Senhor, cheio da mesma misericórdia, vem a nós para nos agraciar com seus dons. Ele vem como nosso “legítimo defensor”: porque nos reconhecemos pecadores; como nosso “legítimo tutor”: porque não sabemos nos conduzir sozinhos.
Entramos, assim, na segunda parte do texto. São Cirilo utiliza, nesta parte, sete verbos para designar a missão do Espírito em nós:
Português | Latim | Grego[3] |
Salvar | Salvare | Σωσαι |
Curar | Sanare | Ιασασθαι |
Ensinar | Docere | Διδαξα |
Aconselhar | Monere | Νουθετησαι |
Fortalecer | Roborare | Ενισχυσα |
Consolar | Consolari | Παρακαλησαι |
Iluminar o pensamento, a inteligência | Illustrare mentem | Φωτισαι την διανοιαι |
Sim, o Espírito do Senhor vem a nós para realizar estas sete coisas. Ele vem para nos “salvar”, porque no mistério da liturgia somos mergulhados na salvação que Cristo nos conquistou, e a liturgia não acontece senão na força do Paráclito, pois ela é a “Epifania do Espírito”.
Ele vem “curar”, mas não tanto as doenças do corpo. Ele vem, sobretudo, para curar as paixões da nossa alma e a ferida da nossa incredulidade e desesperança. O verbo grego utilizado por São Cirilo, o verbo Iaomai, significa curar não somente o corpo, mas curar também a ignorância, reparar o que precisa ser reparado, livrar dos males etc.
Ele vem nos “ensinar”, aliás já fora anunciado por Cristo em Jo 14,26 essa função didascálica do Espírito Santo: Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse. Em Cristo, tudo já nos foi revelado. A Igreja, no entanto, precisa sempre progredir no conhecimento da verdade, orientada pelos seus legítimos pastores. Por isso, a Igreja e cada fiel são, constantemente, “ensinados” pelo Espírito Santo do Senhor. Somos seus alunos, Ele nosso mestre por toda a vida.
O Espírito vem, ainda, “aconselhar-nos”. Este é um dos sete dons do Espírito. Ele vem nos aconselhar para que saibamos que caminho tomar. Para que possamos saber escolher, em cada momento, o caminho da vida (cf. Sl 1).
Este Divino Paráclito nos “fortalece”, sim, ele nos fortalece! Tantas vezes estamos fraquejando no caminho, já prontos a desistir. E aí ele nos vem como o orvalho da manhã, nos revigora com seu sopro e nos faz resistir mais uma hora, mais um dia, mais uma semana, e assim vamos caminhando neste deserto muitas vezes árido da nossa existência, sendo alimentados e fortalecidos pelo Espírito que a tudo rega e renova com a vitalidade que lhe é própria.
Recebemos, ainda, do Espírito, a graça da “consolação”. Este é o seu nome: “Consolador/Paráclito”. Assim Jesus o definiu. Jesus é o primeiro Paráclito, mas ele prometeu enviar-nos um “outro Paráclito” (Jo 14,16). Este Consolador das nossas almas vem sempre que o invocamos. Ele é “invocado” (kaleo) e vem para ficar “junto” (para) conosco. Esse é o sentido do termo “paráclito” – “aquele que é invocado para estar junto conosco”, ao nosso lado, dentro de nós, dando-nos segurança e força interior. Nunca estamos sozinhos, porque Cristo nos enviou esse Divino Consolar que está sempre junto a nós.
Por fim, São Cirilo afirma que o Espírito Santo vem para “iluminar o pensamento/a inteligência” daquele que o recebe. Na Liturgia das Horas, o termo latino “mentem” vem traduzido como “alma”: por isso, encontramos em nossas edições a expressão “iluminar a alma”. O texto grego, no entanto, utiliza o termo dianoia, que pode ser traduzido como “pensamento/inteligência”.
O Cristo, que é “Luz da Luz” como professamos no Credo Niceno-Constantinopolitano, nos envia do alto o seu Espírito e este, por sua vez, nos “ilumina”: ilumina nossos “pensamentos”, nossa “inteligência”, o que há de mais nobre em nós, o nosso “espírito”, com a sua divina luz. Com a nossa inteligência iluminada por ele, nossos sentimentos e atitudes naturalmente se transformam em sentimentos e atitudes luminosas. Por isso, o texto afirma que, através de nós, “o pensamento/inteligência/espírito” dos outros, também será iluminado.
Assim, o texto de São Cirilo é completo, indicando-nos que o Espírito não vem a nós só para nos ornar com seus dons, mas vem a nós também para nos enviar em missão. Uma vez iluminados pelo Espírito, somos chamados a iluminar outros.
Não cessa de me vir à mente a cena do acendimento das velas na Solene Vigília Pascal, com a qual começamos este tempo bendito que ora estamos para findar. À nossa frente tínhamos a vela do Círio Pascal, símbolo da luz de Cristo. Nela alguns poucos acenderam suas velas e foram passando a chama adiante. Não uma chama própria, mas a chama da luz do próprio Cristo. E assim, um a um, fomos nos iluminando até que aquela chama bendita se repartisse entre todos. Do mesmo modo, acontece quando recebemos o Espírito do Senhor. Ele nos ilumina os pensamentos, a inteligência. Com a luz que d’Ele recebemos, devemos também iluminar os outros: com a nossa oração, com o nosso modo de viver, com o apostolado que somos chamados a exercer na Igreja e no mundo, a fim de que, pouco a pouco, a mente dos homens, tão mergulhada nas trevas do século, possa ser iluminada com a luz de Cristo.
No Domingo, em nossas celebrações eucarísticas, na última delas em cada Paróquia, o Círio aceso na Vigília Pascal será apagado. Aquela luz deve, no entanto, manter-se acesa em nossos corações, e não devemos guardá-la só para nós, devemos reparti-la. Acontece com a chama do Espírito o mesmo que acontece com a chama do fogo: quanto mais é repartida, mais cresce, ilumina e aquece. Quem sabe, não conseguimos, assim, repartindo a luz que do Alto recebemos, iluminar e aquecer este mundo tão frio e escuro? Abramo-nos à graça do Espírito e veremos o que Ele pode fazer através de nós!
A ti, Senhor, toda honra e toda glória, e a nós, o teu Espírito Santo!
[1] Cf. Anatole Bailly, Dictionnaire Grec-Français, p. 1779.
[2] Cf. Koheler & Baumgarnter, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testamente, Vol. II, pp. 1218-1219.
[3] Os termos gregos aqui, por questões de ordem técnica, estão sem os devidos acentos e espíritos.
[1] Cf. Anatole Bailly, Dictionnaire Grec-Français, p. 1779.
[2] Cf. Koheler & Baumgarnter, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testamente, Vol. II, pp. 1218-1219.
[3] Os termos gregos aqui, por questões de ordem técnica, estão sem os devidos acentos e espíritos.