At 4,8-12
Sl 117,1.8-9.21-23.26.28ab.29 (R. 22)
1Jo 3,1-2
Jo 10,11-18
O Pai me ama, porque dou a minha vida…
Estamos celebrando o quarto Domingo do Tempo Pascal. No dizer de Santo Atanásio, estes dias do Tempo Pascal devem ser vividos como um “grande Domingo”. Assim como se mantém acesa, na Igreja, durante cinquenta dias, a chama do Círio Pascal, assim também deve manter-se acesa, em nossos corações, a chama do Aleluia, da alegria pascal. Cristo Ressuscitou! Eis a razão da nossa alegria. Cristo Ressuscitou! Eis o núcleo da pregação dos apóstolos que temos ouvido cada domingo com a leitura continuada do livro dos Atos dos Apóstolos.
Pedro, “cheio do Espírito Santo”, como afirma Lucas, anuncia o mistério da Páscoa do Senhor: “vós o crucificastes, mas Deus o ressuscitou” (cf. At 4,10). Os sinais que acompanham a pregação dos apóstolos, nada mais são do que manifestações de poder, que servem para confirmar que o Senhor Ressuscitado age no meio da sua Igreja e por meio dos seus apóstolos.
Para falar da exaltação de Cristo após sua Ressurreição, Pedro lança mão do Salmo 117 (118), salmo responsorial dessa liturgia: “Jesus é a pedra, que vós, os construtores, desprezastes, e que se tornou a pedra angular” (cf. At 4,11). Assim, realiza-se em Cristo o que foi anunciado no Salmo: “A pedra que os pedreiros rejeitaram, tornou-se a pedra angular” (cf. Sl 117[118],22). Aquele que foi rejeitado, abandonado, morto na cruz, ressuscitou gloriosamente. E é “Ele” a pedra “angular”, o fundamento, a Cabeça, o que sustenta todo o edifício.
Na segunda leitura, São João, partindo também do Mistério da Páscoa do Senhor, anuncia a razão da esperança cristã: “o veremos tal como ele é” (cf. 1Jo 3,2). Porque Cristo morreu e ressuscitou, podemos ser chamados de “filhos de Deus”. Pela sua Páscoa, nossa natureza foi regenerada. E agora, também em virtude da sua Páscoa, podemos esperar a vida eterna, onde o veremos não mais em enigmas, mas face a face (cf. 1Cor 13,12).
No coração da liturgia da Palavra está o Evangelho. Este quarto domingo da Páscoa costuma ser chamado de “Domingo do Bom Pastor”, porque nos ciclos A, B e C o evangelho proclamado é sempre um trecho de Jo 10. No Ano A, lê-se Jo 10,1-10; neste ano que estamos celebrando, que é o Ano B, lê-se Jo 10,11-18 e, no Ano C, a perícope evangélica a ser proclamada é Jo 10,27-30.
A oração coleta, que é a mesma nos três ciclos, já nos introduz no que vamos ouvir no evangelho: Deus eterno e todo-poderoso, conduzi-nos à comunhão das alegrias celestes, para que o rebanho possa atingir, apesar de sua fraqueza, a fortaleza do Pastor.
Nos vv. 11-15 o Cristo revela quem ele é com a significativa expressão: “Eu sou”. É a mesma expressão que encontramos em Ex 3,14 e com a qual Deus se revela a Moisés: “Eu sou aquele que sou (ou aquele é)”. Jesus se autorrevela como o “bom pastor”. O termo grego que encontramos aqui e que é normalmente traduzido como “bom” é o termo kalós. Em grego, o termo mais usual para “bom” é o termo agathós. O termo kalós significa, por sua vez, “belo” e pode ser entendido como beleza física, beleza moral ou, ainda, pureza, como no caso dos metais que ainda não foram misturados entre si para formar uma liga.[1]
Jesus é o pastor “belo/bom”. Não se trata só de uma beleza física, mas de uma beleza moral expressa pela usual tradução “bom pastor”. Essa mesma expressão repete-se no v. 14. Em que consiste essa “bondade” do pastor que é Cristo nós o sabemos pelos vv. 11b e 15b, que formam uma espécie de moldura para os cinco primeiros versículos desta perícope: ele “dá/expõe” sua vida pelas ovelhas.[2] Nesse sentido, Jesus realiza perfeitamente em seu sacrifício o que foi profetizado a respeito do “servo de YHWH” em Is 53,10: ele oferece sua vida em expiação pelos pecados de todos.
Contraposta à imagem do “bom/belo pastor” está a imagem do “mercenário”. O termo grego que aqui se traduz como “mercenário” é o termo mistothós, que significa um “servidor assalariado”. Jesus não é como esses pastores. A esses, só interessa o próprio lucro e guardar a própria vida. Por isso, quando o lobo, símbolo do perigo, aparece, ele abandona as ovelhas e foge. O mercenário não é “pastor”, não é “dono” das ovelhas, por isso não se expõe por elas. Jesus é o “pastor”, o “belo/bom pastor”, o verdadeiro “dono” das ovelhas, por isso não se preocupa com sua própria vida, mas a expõe, a dá, pelas suas ovelhas. Afinal, ele mesmo disse que veio para que elas tivessem “vida” em abundância (cf. Jo 10,10). “Provavelmente, o mercenário serve somente para por em relevo o bom pastor, que dá a sua vida pelas ovelhas. As expressões negativas têm em vista pôr em relevo as qualidades do pastor, ao qual pertencem as ovelhas, que se preocupa com elas, não as abandona, não foge”.[3]
O v. 14, na sua segunda parte, indica o modo como se relacionam o Cristo e suas ovelhas: ele as conhece e elas o conhecem. Esse “conhecimento”, indicado pelo verbo grego ginóskein, “não quer dizer um conhecimento teorético-racional, mas sim, no sentido vétero-testamentário semítico, a união pessoal, um conhecimento que leva à comunhão”.[4] Isso vem confirmado pelo v. 15, onde Jesus explicita melhor como é esse mútuo conhecimento: como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. A relação de Jesus com o Pai é o modelo da sua relação com as ovelhas. Mais tarde, no mesmo Evangelho de São João, vamos encontrar um eco disso na oração sacerdotal de Jesus: “Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (cf. Jo 17,21).
Depois de mostrar a extensão de seu projeto salvífico no v. 16, onde fala das outras ovelhas que são, também, suas, embora ainda não estejam naquele “aprisco”, Jesus retoma o tema da livre doação da sua vida. O Pai o ama por isso, porque ele dá sua vida. Ninguém tira sua vida à força, mas ele a dá livremente. E ele a dá, porque “tem poder” de recebê-la novamente. Ele é o “Senhor da Vida”. Ninguém tem poder sobre Ele. Ele pode entregar sua vida e retomá-la de volta, porque, sendo Deus, é Ele “quem dá a morte e dá a vida”, é Ele quem “faz descer à sepultura e faz voltar” (cf. 1Sm 2,6).
Eis diante dos nossos olhos nosso “belo pastor”. Sua beleza, sua bondade, manifestam-se no seu sacrifício de amor. O belo pastor deixou-se ferir por amor e já “não parecia ter figura humana” (cf. Is 52,14). Sua beleza não atraia nosso olhar (cf. Is 53,2), porque ele deixou-se ferir, a fim de que não fôssemos mais “ovelhas errantes” (cf. Is 53,6), mas nos tornássemos ovelhas do seu redil. Ele ressuscitou gloriosamente e nos chamou até Ele. Ouçamos a sua voz! Deixemo-nos envolver pelo seu amor. Cantemos a sua ressurreição e o sigamos por onde Ele for. Com certeza, ao fim da nossa vida, haveremos de ser por Ele introduzidos no banquete da vida eterna que Ele nos preparou. Lá o milagre da unidade pelo qual batalhamos aqui na Terra realizar-se-á plenamente. Porque Deus será “tudo em todos” (1Cor 15,28) e nós seremos “um só rebanho” (cf. Jo 10,16), tendo diante de nós um só bom/belo pastor
[1] Cf. Bailly. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2000.
[2] Cf. Schnackenburg, R. Il Vangelo di Giovanni. Parte Seconda, p. 492.
[3] Cf. Schnackenburg, R. Il Vangelo di Giovanni. Parte Seconda, p. 495.
[4] Cf. Schnackenburg, R. Il Vangelo di Giovanni. Parte Seconda, p. 495.