Eclo 27,33 – 28,9
Sl 102
Rm 14,7-9
Mt 18,21-35
Ele te perdoa toda culpa… (cf. Sl 102,3)
A liturgia da Palavra deste domingo nos apresenta, como Salmo Responsorial, o Salmo 102 (103). O Salmo é um convite a louvar a Deus, porque Ele “perdoa toda culpa, cura toda enfermidade” (v.3) e, salvando o homem da sepultura, o cerca de “amor e misericórdia” (v. 4).[1]
Se Deus, no seu amor e misericórdia, nos perdoa “toda culpa”, quem somos nós para não perdoarmos o nosso irmão. É justamente sobre o perdão que as leituras deste domingo vêm nos falar.
A primeira leitura é um trecho do livro do Eclesiástico, que começa mostrando que o “rancor” e a “raiva” são detestáveis e, por isso, também o homem pecador procura dominá-los. O restante da leitura segue mostrando que, em última análise, por causa de Deus e do bem que espera alcançar da parte d’Ele, é que o homem deve, também ele, perdoar aquele que lhe faz o mal. O homem deve “pensar nos mandamentos”, “pensar na Aliança do Altíssimo” e, assim, não “guardar rancor”, não “levar em conta” a falta alheia. Afinal, se alguém “não tem compaixão” do seu semelhante, como poderá pedir perdão pelos próprios pecados?
Trata-se, sem dúvida, de um trecho muito forte da Palavra de Deus. Todos os dias temos que lidar com pessoas que nos fazem o mal ou com as lembranças do mal que já nos fizeram. Como não guardar rancor? Como não desejar que o ódio nos domine? Devemos nos esforçar por dominar a paixão da ira, e a recordação da misericórdia do Senhor para conosco, pode ser, sem dúvida, um bom remédio para isso. Sem dúvida alguma, a oração com os Salmos, que tanto cantam a misericórdia e a bondade do Senhor, e a “leitura orante” da Palavra, são, também, remédios eficazes contra as sugestões diabólicas que nos apontam para a ira.
No Evangelho, a partir da pergunta de Pedro, Jesus propõe uma parábola, que nos ajuda a contemplar a imensidão da misericórdia de Deus. Pedro começa perguntando ao Senhor quantas vezes ele deve perdoar o irmão que pecar contra Ele. Pedro quer saber se deve perdoar até “sete vezes”… Jesus responde dizendo que, não somente “sete vezes” Pedro deve perdoar, mas sim, “setenta vezes sete”. Aqui a simbologia dos números não serve para indicar a quantidade de vezes que se deve perdoar, limitando-a a sete ou a quatrocentos e noventa (70 x 7). “Sete” e, sobretudo, “setenta vezes sete” são expressões que significam que o perdão deve ser dado sempre e o motivo pelo qual se deve “perdoar sempre” vem esclarecido pela parábola (Cf. Mt 18,23-35).
A parábola fala de um rei que começou a acertar as contas com os seus servos. Ele começa chamando um que lhe devia, segundo a tradução de nosso lecionário, uma “enorme fortuna”, mais precisamente, dez mil talentos. Segundo algumas fontes, o talento era uma medida que equivalia a quase 35 kilos. O homem estaria devendo mais de trezentas toneladas (talvez de prata?) ao seu rei. Ele não podia nunca pagar tal dívida e devia, como era costumeiro, ser vendido como escravo, junto com sua mulher e filhos. Ele então se prostra diante do patrão, dizendo: “Sede paciente comigo, e eu te darei tudo de volta.” A expressão “sede paciente” corresponde ao verbo grego makrotymeo. O termo grego “thymos” em grego, significa o “coração”, mas não enquanto órgão físico (kardia) e, sim, enquanto sede dos sentimentos.[2] O servo devedor pede que seu patrão tenha um “coração grande” para dar-lhe a possibilidade de pagar, em breve, sua dívida. O patrão, no entanto, não atende ao pedido do empregado. Ele faz algo muito maior, inaudito: tomado de uma compaixão profunda ele solta o empregado e lhe perdoa a dívida.
Logo em seguida, esse “homem redimido” se encontra com alguém que lhe deve apenas cem moedas, ou “cem denários”. O denário é uma pequena moeda de prata. Segundo alguns autores, só para termos noção da desproporção entre as duas dívidas, 25 denários valiam, na época do Novo Testamento, um áureo (uma moeda de ouro). Os cem denários, eram equivalentes a quatro áureos. A dívida do servo do rei, no entanto, se transformada de talentos de prata em áureos, equivalia a 2.400.000 áureos.[3] Isso mesmo: o que teve milhões perdoados, não foi capaz de perdoar uma dívida de quatro moedas. Segundo diz Jesus na parábola, o servo que foi perdoado se lança no pescoço do homem que lhe deve uma pequena quantia, começa a sufocá-lo e, diante da súplica daquele que lhe deve quantia tão irrisória, ele fica insensível e o lança na prisão.
Duas dívidas desproporcionais; duas atitudes desproporcionais. De um lado uma grande dívida, que encontrou uma grande misericórdia. De outro lado, uma pequena dívida, que encontrou somente violência e vingança.
A parábola termina com a mudança de sorte do homem redimido. O patrão, sabendo de sua atitude, tão contrária à misericórdia que ele havia encontrado, diz: Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti? E esse homem sem misericórdia é entregue aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida.
Contudo, mais forte que o desfecho da parábola, são as palavras do Senhor Jesus dirigidas a nós: É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão.
Deus nos perdoou uma dívida imensa. E o perdão dessa dívida nos veio por meio do sacrifício único do seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo. Continuamente o Pai continua nos dispensando seu perdão. A experiência do “perdão recebido” deve se transformar em “perdão oferecido” àqueles que nos ofendem. Do contrário, não haveremos de encontrar misericórdia no dia do juízo. Se, ao contrário, soubermos ter um “coração grande” capaz de perdoar os irmãos, como Deus sempre nos perdoa, poderemos partir desse mundo em paz, na certeza de que encontraremos também graça, misericórdia, perdão diante do Senhor.
Que o Senhor nos ajude a trilhar esse caminho da misericórdia. Que Ele, o “Senhor dos mortos e dos vivos”, derrame sobre nós a força do seu Espírito Santo, a fim de que, contemplando e experimentando dia a dia a misericórdia d’Ele para conosco, possamos crescer também em atitudes de misericórdia para com os nossos irmãos.
[1] A tradução do lecionário traz “carinho e proteção”, porém, a melhor tradução para os termos hebraicos hesed e rahamin seria “amor/bondade” e “compaixão”, respectivamente.
[2] Cf. Bailly, A. Dictionnaire Grec-Français. p. 948.
[3] Cf. McKenzie, J. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, pp. 240-241.