Lv 19,1-2.17-18
Sl 102
1Cor 3,16-23
Mt 5,38-48
“Vós sois de Cristo…” (cf. 1Cor 3,23)
O apóstolo Paulo, na segunda leitura que a liturgia nos propõe neste domingo, convida a comunidade de Corinto a “reconhecer a sua insensatez”, a fim de que possam, com Cristo, tornar-se “sábios de verdade” (cf. 1Cor 16,18). De onde pode advir para nós a verdadeira sabedoria senão da Palavra de Deus? Devemos pois, diante dela, “inclinar” nosso coração, a fim de que, ouvindo as divinas sentenças, possamos adquirir a sabedoria que nos conduz nesta vida e que nos conduzirá à outra vida.
A primeira leitura que nos é apresentada neste domingo é um trecho do livro do Levítico, ao qual Jesus vai acenar na continuação do Sermão da Montanha. O texto de Lv 19 encontra-se dentro do “Código[1] da Santidade” (cf. Lv 17-26). Nestes capítulos encontramos uma série de prescrições que visavam manter o povo de Israel num estado de santidade, numa pureza ética e cultual, a fim de poderem servir ao “Deus Santo”.
A grande motivação para a vivência deste estado de “santidade” é a “santidade” do próprio Deus, como se pode depreender já de Lv 19,1: Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo. O termo utilizado aqui para indicar a santidade do próprio Deus e a santidade na qual o povo de Israel é chamado a viver é o termo qadosh. Este termo guarda em si o sentido de separação. O “santo” deve estar separado do profano. Em textos antigos aparece clara a ideia de que se alguém entrar em contato com aquilo o que é santo sem estar purificado, ele será destruído. A separação daquilo o que é santo era uma forma de se preservar da profanação as coisas sagradas e, ao mesmo tempo, uma forma de preservar da destruição as pessoas profanas pelo contato indevido com o que é sagrado.
Deus é o “santo” por excelência. O totalmente outro, inacessível ao mal. A comunidade dos filhos de Israel é chamada a viver também neste estado de santidade. O povo de Israel deve separar-se dos outros povos por meio de suas crenças e costumes e deve também ela viver num estado de pureza ética. Eis os mandamentos como este caminho para se viver a santidade.
Em Lv 19,17-18, o segundo trecho da primeira leitura de hoje, encontramos uma lição a respeito do amor e do ódio. Três coisas não devem ser jamais feitas, três grandes interditos perpassam estes dois versículos: Não odieis no coração… não procureis vingança… não guardeis rancor… Essas ordenanças dizem respeito às relações entre o povo, pois o texto fala do não odiar os “irmãos” e não procurar vingança ou guardar rancor dos “filhos do teu povo”[2].
Depois desses dois grandes interditos, temos duas ordens positivas: Repreende… (v. 17) Ama… (v. 18). A quem se deve “repreender” para o bem e a quem se deve “amar”? Deve-se repreender e amar o “próximo”. O original hebraico utiliza aqui duas palavras diferentes para indicar esse “próximo”. No v. 17 o termo traduzido como “próximo” é o termo hebraico ’amît, que significa literalmente “o homem da minha sociedade, do meu povo” ou “aquele que me é amigável”.[3] No v. 18, por sua vez, aparece o termo hebraico rea’, cujo sentido depende muito do contexto onde o termo está inserido, mas que de modo geral designa aquele com quem sou posto em contato e com o qual tenho que conviver devido às circunstâncias da vida.[4]
Podemos intuir, então, que se tratam de mandamentos que regulam a vida da própria comunidade israelita e, pelo menos nestes versículos, não se fala de modo claro dos estrangeiros ou daqueles que são abertamente inimigos do povo. O não fazer o mal, o não vingar-se, o repreender (como uma expressão do amor) e o amar o outro como a si mesmo parece estar ainda circunscrito, pelo menos nos versículos em questão, à própria comunidade dos filhos de Israel.
O fundamento deste “amor” que é expressão da vida de santidade do povo está na santidade e no amor do próprio Deus. O Salmo 102 (103),8, salmo responsorial deste domingo, é um convite a louvar a Deus justamente porque Ele é “indulgente e favorável” (cf. Sl 102,8 e tb. Ex 34,6; Sl 86,15).
O Evangelho deste domingo, continuação de Mt 5, nos apresenta ainda o Cristo no seu papel de intérprete autorizado da Lei. Ele veio dar a essa Lei “pleno cumprimento” (cf. Mt 5,17) conforme ouvimos domingo passado. Lendo este trecho que a liturgia hoje nos propõe percebemos uma clara ampliação da primeira leitura, do texto de Lv 19,17-18 particularmente.
O evangelho de hoje poderia ser dividido em três partes: os vv. 38-42, que falam sobre o “não enfrentar” o malvado; os vv. 43-45, que tratam do verdadeiro amor ao próximo; os vv. 46-48, a busca da perfeição da santidade.
Tanto na primeira, quanto na segunda parte deste evangelho, encontramos fórmulas estereotipadas que indicam que Jesus está se colocando como o intérprete autorizado da Lei: Vós ouvistes o que foi dito (vv. 38.43); Eu, porém, vos digo (vv. 39.44). Na primeira parte trata-se do rechaçar o ódio, tal qual encontramos em Lv 19,17a. Jesus opõe à dureza da Lei do Talião um comportamento novo: Não enfrenteis quem é malvado. O que significa esta expressão? O verbo grego é anthístemi. O sentido de anthístemi é aquele de “colocar-se contra”, mas pode também significar “comparar-se com”. Ao afirmar que não se deve enfrentar quem é malvado, Jesus não está admitindo uma complacência com o mal, mas sim nos ensinando que responder a maldade, entrando na lógica da vingança, só leva a um aumento do mal, que expande cada vez mais suas proporções. Quando assim agimos, acabamos nos “comparando” com quem é malvado. Os que, por sua vez, enfrentam o mal com o bem, estes sim conseguem anular as forças do mesmo mal, são os verdadeiramente “mansos”, que “herdarão a terra” (cf. Mt 5,4). É neste sentido que Jesus fala do dar a outra face, do dar o manto a quem pede a túnica, do andar dois quilômetros com quem exige que se caminhe um etc.
Na segunda parte deste evangelho, Jesus trata do amor ao próximo. Mateus cita Lv 19,18, mas numa forma que não se encontra no texto hebraico: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. O texto de Lv 19,18 não fala de ódio ao inimigo. Contudo, conforme vimos acima, o texto dá a entender que este “próximo” é o somente o compatriota, o irmão de raça e de fé, ou aquele que é gentil para com o povo. Pode ser que, com o passar do tempo, a interpretação comum do povo tenha sido essa: devo amar somente ao amigo e odiar o inimigo. Jesus corrige essa possível interpretação defeituosa da Lei e faz com que agora não se tenha mais dúvidas: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem. É assim que nos tornamos “filhos do Pai que está nos céus”, pois o Pai é assim, fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre bons e maus, sobre os que crêem e os que não crêem, sobre os que o amam e sobre os que dele zombam.
Na sua terceira parte, o evangelho se harmoniza perfeitamente com a primeira leitura, pois a grande motivação do cristão para agir segundo o “mandamento novo” do amor aos inimigos e da não-violência é a santidade/perfeição do Pai: …sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito! Em Lv 19 se fala do Pai que é Santo e da comunidade que deve ser, também ela, um reflexo da santidade do Pai. Aqui Jesus fala do Pai que é perfeito e, por isso, os cristãos devem ser também um reflexo dessa perfeição.
Não se deve entender aqui perfeição como simples ausência de todo e qualquer defeito. Isso poderia levar alguém a uma ideia de um perfeccionismo que poderia acarretar a queda no orgulho ou no completo desânimo por encontrar em si defeitos que ainda precisam ser corrigidos. O termo que ora traduz-se como “perfeitos” é o termo grego “teléios”, derivado de “télos”, que significa “fim, finalidade”. Em se tratando do Pai Celeste é claro que Ele é perfeito, sem erros, sem necessidade de correção e progresso. Em se tratando de nós, sabemos que continuaremos sempre com falhas e erros, sempre necessitados de correção e progresso, mas devemos atingir o nosso fim, a finalidade da nossa existência, que é a “santidade”. Por isso, a quem entenda o termo teléios em Mateus não como “perfeição moral”, mas como “verdade, sinceridade”. O chamado a perfeição aqui é um chamado a viver uma vida “verdadeira”, um chamado a sermos “sinceros” e “transparentes” diante de Deus, sem duplicidade em nosso coração. Se assim formos, pouco a pouco também as virtudes morais vão crescendo em nós.
Somente sendo sinceros, verdadeiros, transparentes, seremos um verdadeiro reflexo da própria presença de Deus para nossos irmãos.[5]
[1] Código ou Lei de Santidade.
[2] Compatriotas, como traduz o lecionário.
[3] Cf. Koheler & Baumgartner. Vol. I, p. 845.
[4] Cf. Koheler & Baumgartner. Vol. II, p. 1253-1254.
[5] ALBRIGHT, W.F. et MANN, C.S. Matthew.The Anchor Yale Bible. New Haven & London, Yale University Press, 2011, p. 72.