Ex 32,7-11.13-14
Sl 50 (51)
1Tm 1,12-17
Lc 15,1-32
A oração coleta deste domingo é uma bela eucologia, onde o sacerdote, em nome de toda a assembleia, suplica a Deus que Ele “volva para nós o seu olhar”. Junto com esse pedido vem outro, o de que nos seja possível servir a Deus “de todo o coração”, e isto com a única finalidade de “sentirmos em nós ação do amor do próprio Deus”. É nosso desejo andar constantemente sob o olhar amoroso de Deus. É ainda nosso desejo servir a Deus, não por obrigação ou por medo, mas “de todo o coração”, a fim de que, servindo-o, a ação do seu amor infinito se faça sentir em nós, como a nossa única e perfeita “recompensa”.
As leituras desse domingo nos fazem contemplar a misericórdia de Deus. A primeira leitura é um trecho do livro do Êxodo que nos faz perceber como Deus passa da ira para a misericórdia.
A cena se passa aos pés do Sinai. Moisés subiu para receber de Deus as tábuas da Lei, as “dez palavras”, sinal permanente da aliança de YHWH com os homens. Achando que Moisés tardava, o povo se reuniu em torno de Aarão e pediu que este lhes fizesse “um deus”, uma imagem à qual eles pudessem chamar de deus e assim foi feito (cf. Ex 32,1-6).
O Senhor dá, então, uma ordem a Moisés: “Vai, desce, pois corrompeu-se o teu povo, que tiraste da terra do Egito.” Já estas primeiras palavras nos dão a perceber o tamanho da indignação de Deus com a atitude do povo. Deus os trata não mais como “seu povo”, mas como o “povo de Moisés”. A idolatria demonstra aqui a ruptura desse povo com o próprio Deus. Não mais reconhecem que foi YHWH quem os tirou do Egito, mas atribuem esta graça ao seu “novo deus”, ao bezerro, que Aarão acabara de fundir.
Nos vv. 9-10 o Senhor lança uma grave ameaça contra o povo: “Vejo que este é um povo de cabeça dura. Deixa que minha cólera se inflame contra eles e que eu os extermine. Mas de ti farei uma grande nação”. Não somente a aliança está ameaçada pela idolatria, mas a própria existência desse povo. A cólera de YHWH se inflama contra eles, porque são um povo “de cabeça dura”, que não sabe perceber que o próprio Senhor caminha com eles e nunca lhes abandona. A todo instante eles põem em dúvida a ação amorosa de Deus, ora sentindo saudades do Egito, terra de escravidão, ora abandonando o Deus verdadeiro para seguir uma obra feita pelas mãos do homem.
Moisés, contudo, do v.11 em diante aparece como um intercessor, que suplica a misericórdia de Deus pelo povo. Dois verbos marcam essa parte do discurso de Moisés: o verbo “suplicar” no v. 11 e o verbo “lembrar” no v. 13. Moisés “suplica”, “intercede pelo povo”. Este mesmo verbo aparece em 1Rs 13,6 com o sentido de “aplacar”. Moisés aplaca a ira divina pedindo-lhe que “se lembre”. O homem de Deus pede a Deus que ele se “recorde” da sua aliança, feita com os antepassados. Moisés pede a Deus que se aplaque não porque o povo é bom, mas sim porque Ele, YHWH, é fiel à sua palavra e, por isso, deve “se lembrar” de tudo o que havia prometido aos pais, a fim de que esse povo não pereça, mas seja ainda o depositário das suas promessas.
O v. 14 conclui a perícope, mostrando como a misericórdia de Deus se realizou: “E o Senhor desistiu do mal que havia ameaçado fazer ao seu povo.” A expressão hebraica que se traduz aqui como “desistiu do mal” traz em si o verbo naham, verbo este muito presente no Antigo Testamento para indicar a misericórdia de Deus. Deus teve misericórdia, lembrou-se da aliança feita aos antepassados, e mais uma vez suportou aquele povo de cabeça dura continuando a acompanhá-los no meio das suas vicissitudes até que a promessa da posse da terra se realizasse.
Moisés aparece aqui como o protótipo do homem que sabe suplicar a Deus a sua misericórdia. Essa súplica a Deus pela sua misericórdia aparecerá, também, no Salmo 50, Salmo Responsorial da liturgia da Palavra deste domingo. O Salmo evoca o pecado de Davi com Betsabéia. O grande Rei Davi não somente deixou o seu coração de inclinar ao adultério, mas também ao homicídio, a fim de encobrir o seu pecado. Davi, todavia, quando reconheceu seu pecado abrindo seu coração à palavra de Deus que lhe veio por meio do profeta Natan (cf. 2Sm 11-12), suplicou a misericórdia divina. Esse Salmo apresenta o rei que reconhece seu pecado, suplica a misericórdia e pede a graça de um “coração novo”.
Essa misericórdia divina já contemplada no Antigo Testamento será revelada de modo perfeito no Novo Testamento, pelo próprio Cristo. Lucas, chamado o “evangelista da misericórdia”, nos apresenta no cap. 15 de seu evangelho as três “parábolas da misericórdia”. Em Lc 15,1-7 encontramos a parábola da ovelha perdida, que também aparece em Mt 18,12ss. Lc 15,8-10 e Lc 15,11-32 nos trazem, contudo, duas parábolas próprias de Lucas: a moeda perdida e a ovelha perdida.
As três parábolas apresentam temas comuns: algo que é perdido; a busca e depois o reencontro; a alegria que brota desse reencontro é marcada por uma festa. As três parábolas vão num crescendo: primeiro se trata de uma ovelha perdida, depois de uma moeda e, depois, de um filho. A primeira e a segunda são mais sintéticas e são marcadas pelo verbo grego synkairo, que significa alegrai-vos comigo, indicando assim a alegria que brota do reencontro de algo perdido que agora foi reencontrado. Na primeira e na segunda parabola, Jesus conclui a cena mostrando que, a imagem por ela fornecida, deve remeter seus ouvintes à alegria divina pelo pecador que se converte: “Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (cf. Lc 15,7) e ainda: “Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,10).
Nosso olhar poderia, contudo, se dirigir para a terceira parábola que ocupa a maior parte do relato evangélico: a parábola dos dois filhos. Esses dois filhos nos remetem ao início do cap. 15 onde Lucas diz nos vv. 1-2: “Naquele tempo, os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei, criticavam Jesus.” Os dois filhos da parábola, já de início, nos apontam para os dois tipos de ouvintes que estão diante de Jesus: pecadores e fariseus/mestres da Lei. Os pecadores “ouvem”, enquanto os mestres da Lei e fariseus “criticam”. Jesus, com a parábola que se segue, vai ilustrar dois tipos de comportamento, que demonstram tanto a diferente atitude destes dois tipos de pessoas que compõem o seu público, como também, no final, ilustra como é a misericórdia do Pai, conceito esse que parecia estar distante da concepção dos fariseus e mestres da Lei e que encorajaria, por sua vez, os publicanos e pecadores, a se aproximar de Deus.
O filho mais jovem é o que sobressai na primeira parte do relato. Ele pede ao pai “a parte da herança que lhe cabe”. O pai, mesmo talvez estupefato diante de tal pedido, divide os bens, e dá ao mais moço o que lhe cabe. É interessante notar o vocabulário utilizado por Lucas nesse início da parábola. O evangelista utiliza dois termos distintos para designar a “herança” pedida pelo filho mais moço ao seu pai no v. 12. Na boca do filho mais novo, Lucas coloca o termo grego ousia, que habitualmente traduzimos na teologia como “substância”, mas que pode designar, também, a propriedade, a riqueza, algo que alguém possui, no caso, a “herança”. Mas, ainda no mesmo versículo, o termo que Lucas utiliza para indicar a “herança” ou “os bens” que o pai dividiu entre seus filhos é o termo bios, que habitualmente traduzimos como “vida”. O filho pede os bens, contudo, junto com os bens, o pai dá ao seu filho a sua própria vida, pois afinal o filho faz parte da vida do pai e, com o filho que se vai, metaforicamente, se vai também uma parte da vida do pai.
Esse filho parte para uma terra distante e gasta tudo numa vida “dissoluta” ou “desenfreada” como traduzem alguns. No meio da penúria, contudo, o filho se recorda da fartura existente na casa paterna (cf. v. 17). Ele prepara então um discurso (v. 18), se levanta, e parte para ir ao encontro da fartura que ele havia abandonado. Alguns acreditam que poderíamos ver já aqui nesse gesto, ainda que motivado pela falta dos bens materiais, o início da conversão do filho, que empreende o caminho de volta para a casa paterna. Outros, contudo, preferem ver a conversão do filho no momento do abraço paterno. Esta atitude do pai, de fato, o surpreende. O pai já o aguardava, porque o evangelista diz que, quando ele ainda estava “longe”, o pai o avistou e correu-lhe ao encontro (cf. v. 20).
A parábola caminha para o mesmo desfecho que as anteriores, ou seja, depois de dar ao filho que retorna os sinais que indicam a retomada da sua dignidade: anel, sandália e veste nova, o Pai manda preparar uma festa, manda matar o novilho cevado, e manda todos entrarem na sua alegria.
É neste momento da parábola que o filho mais velho, imagem dos fariseus, entra em cena. Ele não entra na festa e, quando o pai vai ao seu encontro, porque também a este o pai procura, ele despeja no pai a sua amargura: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado”. Embora nunca tenha transgredido nenhum dos mandamentos, o filho mais velho também não se sente filho. Ele se sentia apenas como um empregado que espera ansiosamente uma recompensa. E pior: ele não aceita entrar na alegria do pai, que consiste em receber e acolher de volta o filho perdido.
E assim termina a parábola, sem sabermos se o filho mais velho se “converterá”. Contudo, acolhemos as palavras do pai da parábola: “era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver, estava perdido, e foi encontrado.”
Essa parábola se torna um estímulo para nós. Devemos estar seguros da misericórdia do Pai dos céus. Se dele nos afastamos, não importa o quão longe tenhamos ido, ele sempre estará lá, nos esperando, aguardando ansiosamente a nossa volta para também nos abraçar e cobrir de beijos. Ele deseja pôr em nosso dedo um anel novo, renovando conosco sua aliança de amor. Ele deseja tirar as nossas vestes e nos dar uma veste nova, aquela mesma com a qual Ele nos revestiu no dia do nosso batismo. Ele deseja, enfim, pôr em nossos pés cansados e feridos sandálias novas, para que possamos continuar nossa caminhada até a Jerusalém Celeste.