Lv 19,1-2.17-18
Sl 102 (103)
1Cor 3,16-23
Mt 5,38-48
Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? (1Cor 3,16)
Com estas palavras, tomadas da segunda leitura desta liturgia dominical, o apóstolo Paulo exorta os cristãos de Corinto a uma tomada de consciência: somos o templo de Deus. Nós não pertencemos mais a nós mesmos, mas somos de Cristo (cf. 1Cor 3,23). O templo de pedra onde nos reunimos é um sacramento do templo que é cada pessoa que ali se congrega para a eucaristia dominical. Juntos, formamos um edifício espiritual do qual somos as “pedras vivas” (1Pd 2,5). É em nós que Deus habita em primeiro lugar. Essa consciência de ser “habitação de Deus” e de pertencer inteiramente a Cristo deve orientar toda a nossa vida.
Os nossos atos se modificam à medida em que meditamos neste mistério e nele entramos gradativamente. Se a nossa conversão não se dá em virtude dessa tomada de consciência, a saber, de que somos o templo de Deus e de que pertencemos totalmente a Cristo, ela se torna somente uma simples mudança de hábitos. Isso é até bom, mas não é suficiente. A conversão é mais do que uma reeducação das nossas atitudes. A conversão é uma mudança radical, refletida sim no exterior, mas que se opera a partir de dentro, quando vamos pouco a pouco deixando-nos penetrar por esta realidade: somos o “templo de Deus” e “pertencemos totalmente a Cristo”.
Continuando a ouvir no evangelho o grande a sermão da montanha, que ocupa os caps. 5-7 do evangelho de Mateus, hoje somos colocados diante de duas grandes máximas, que fazem eco à primeira leitura: amar os irmãos, até mesmo os inimigos (cf. Lv 19,17-18 e Mt 5,43) e buscar assemelhar-se ao Pai na santidade de vida (cf. Lv 19,2 e Mt 5,48).
Em Mt 5,43-44 encontramos a seguinte afirmação de Jesus: “Vós ouvistes o que foi fito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos
e rezai por aqueles que vos perseguem!” A ordem de amar o próximo nós a encontramos em Lv 19,18, inclusive mais desenvolvida que em Mateus, trazendo o complemento “como a ti mesmo”. Mas a ordem de “odiar os inimigos” nós não a encontramos claramente expressa no Antigo Testamento. Alguns pensam que Jesus se esteja referindo aos chamados Salmos imprecatórios, que pedem que Deus se vingue dos inimigos do povo ou, ainda, ao conceito restrito de “próximo” que, em tempos do Novo Testamento, se referia ao judeu de nascimento ou àquele que se convertia ao judaísmo. É na comunidade de Qumran, um grupo judaico afastado do judaísmo vivido em Jerusalém, que encontramos expressamente a ordem de odiar os inimigos. Os membros desta comunidade deviam “amar todos os filhos da luz […], mas odiar todos os filhos das trevas”. Os “filhos da luz” seriam os membros da comunidade, enquanto os “filhos das trevas” seriam aqueles que não aderem às suas práticas, inclusive os próprios judeus que não pertenciam à comunidade de Qumran. Considera-se que é esta tradição interpretativa que está na base do que Mateus nos reporta.[1]
Jesus rompe com tal tradição interpretativa. Isso se dá não somente porque a ideia de “próximo” para Jesus era muito mais ampla (cf. Lc 10,25-37), mas também porque Ele deseja que não paguemos o mal com o mal, rompendo assim o círculo vicioso da vingança. É esse o sentido da afirmação que encontramos em Mt 5,39: “Não enfrenteis quem é malvado!” Contudo, mais do que não responder à violência com violência, Jesus nos faz sair da passividade e ter uma postura ativa diante dos que nos fazem o mal: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornais filhos do vosso Pai que está nos céus…” (cf. Mt 5,44-45). Eis o exigente caminho da salvação que o Senhor coloca diante de nós neste domingo.
O trecho do evangelho proclamado nesse domingo se encerra com a sentença “Sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito” (cf. Mt 5,48). O texto de Mateus é um eco de Lv 19,2: Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo. Se lemos Mt 5,48 em conexão, ainda, com Lc 6,36, perceberemos que se trata da “perfeição na misericórdia”: Sede misericordiosos, como o vosso Pai celeste é misericordioso. O sentido de “perfeição” que é o termo utilizado em Mateus, parece ser bem explicado por um eminente exegeta, cuja obra já foi citada aqui em nota de rodapé, Joachim Gnilka: Em que coisa consiste essa perfeição de Deus, que deve constituir uma norma para o homem? Das diversas conotações que se encontram na etimologia do vocábulo (irrepreensível, sem defeito, probo, cf. Jó 1,1; 2,3) deve ser ressaltada, antes de tudo, a ideia de inteiro, não despedaçado, indiviso. Deus, na sua bondade, se volta indiviso para o homem. Em virtude disso, a perfeição à qual o homem deve aspirar consiste no imitar esta existência total e indivisa, e não no perfeccionismo que o levaria a fazer parte de uma elite. No amor indiviso que não exclui ninguém é que encontra cumprimento esse mandamento. Isto torna o homem filho de Deus. É claro que o homem não atinge nunca a medida de Deus; mas na limitada medida do humano o homem deve ser indiviso no próprio amor.[2]
Devemos ser “indivisos” na prática do amor. Isso nos mostra que devemos praticar a misericórdia sem limites, a fim de sermos também tratados com misericórdia da parte de Deus. É assim que rezamos no Pai nosso… perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido… O contexto onde Mt 5,48 está inserido confirma também que se trata da perfeição na prática da misericórdia. Todo o conjunto fala sobre a importância de amar também os inimigos e de renunciar ao ciclo vicioso da vingança.
Peçamos ao Senhor a graça de vivermos à altura do evangelho que hoje ouvimos. Nenhum mandamento é mais exigente que o mandamento do amor. O amor inclui, perdoa, dá mais uma chance… O amor é uma tarefa urgente e exigente. Num mundo tão polarizado e dividido por tanta discórdia e desejo de vingança, o testemunho do amor deve ser o diferencial cristão, pois, afinal: “se amais somente aqueles que vos amam,
que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário?
Os pagãos não fazem a mesma coisa?” (cf. Mt 5,46-47).
[1] J. Gnilka, Il vangelo di Matteo, Brescia: Paideia, v. I, p. 287.
[2] Cf. GNILKA, Joachim, Il Vangelo di Matteo, v. I, Brescia: Paideia Editrice, p. 295.