Eclo 15,16-21 (gr. 15-20)
Sl 118
1Cor 2,6-10
Mt 5,17-37
O longo trecho de Mt 5 que ouvimos hoje, começa afirmando: “Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” Aqui o evangelista utiliza o termo grego “plerou”. Esse termo significa “cumprir”, mas também “fecundar, tornar pleno, completar etc”.[1] O Cristo não veio “destruir/abolir” a Lei, mas veio revelar aos homens, a todos nós, como cumpri-la verdadeiramente. E é justamente a respeito do cumprimento perfeito da Lei que o Senhor vai nos falar neste trecho do Evangelho que neste domingo a liturgia nos apresenta.
Depois de se auto-apresentar como aquele que veio levar a Lei a seu pleno cumprimento, o Cristo apresenta o tema da obediência, da prática da Lei, nos vv. 18-20. Ele exorta os ouvintes, já nesta segunda parte do grande Sermão da Montanha (Mt 5-7), a viver uma “justiça” superior a dos “mestres da Lei” e “fariseus”. Caso contrário, eles não entrarão no “Reino dos Céus”. O Reino exige uma nova forma de viver a Lei, superior à antiga, e esta nova forma de viver a mesma Lei só pode ser ensinada pelo Cristo, o verdadeiro hermeneuta, o intérprete autorizado da Palavra, pois afinal, como afirma São João no prólogo do seu evangelho, Ele é a “Palavra que fez carne e habitou entre nós” (cf. Jo 1,14).
Depois desta introdução o evangelho nos apresenta quatro grandes ensinamentos de Jesus: sobre o ódio (vv. 21-26); sobre o adultério (vv. 27-30); sobre o divórcio (vv. 31-32); sobre o juramento (vv. 33-37).
Todos os ensinamentos têm em comum uma estrutura que começa pela expressão “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos” (cf. v. 21), com algumas pequenas modificações nos versículos subsequentes (cf. vv. 27.31.33). Logo em seguida, retine nos ouvidos da assembleia a repetição insistente de Jesus: “Eu, porém, vos digo” (cf. vv. 22.28.32.34). Com esta repetição fica claro que Jesus está contrapondo o ensinamento antigo a um ensinamento novo, garantido por Ele mesmo. Não uma “lei nova”, mas a “mesma lei” vivida de modo totalmente novo.
Em cada um dos quatro ensinamentos Jesus ensina o ouvinte/leitor a viver de modo profundo e não na “mera letra” aquilo o que a Lei ordena fazer.
O mandamento do “não matar” (cf. Ex 20,13) Jesus o desdobra, levando-nos a perceber que não somente o assassinato está ali implicado, mas também todas as formas de “matar” o outro em nosso coração: o ódio, a ofensa, a cólera não dominada… O sentido de tal mandamento se torna tão profundo, que nos vv. 23-24 Jesus coloca como condição para apresentar uma oferenda diante do altar a reconciliação prévia com o irmão “que tem alguma coisa contra ti”, e não somente com aqueles contra os quais se tem alguma desavença ou mágoa oculta.
Nos vv. 27-30 Jesus também aprofunda o sentido de Ex 20,14: “Não cometerás adultério”. Já o desejo consentido no coração é o início do adultério. Metaforicamente, o Senhor vai dizer que é melhor perder o olho direito ou a mão direita, do que todo o corpo ser lançado no inferno. É claro que não se trata aqui de uma incitação à mutilação, mas sim, como já dito acima, uma metáfora, que mostra que é necessário mortificar os membros e, com os avanços modernos da psicologia, podemos concluir que é necessário mortificar o próprio pensamento e a fantasia, a fim de que o pecado consentido no coração não acabe de desdobrando num ato concreto.
Nos vv. 31-32 o ensinamento é a respeito do divórcio. Em Dt 24,1 está escrito: “Quando um homem tiver tomado uma mulher e consumado o matrimônio, mas esta logo depois não encontra mais graça a seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente, ele lhe escreverá então uma ata de divórcio e a entregará, deixando-a sair de casa em liberdade.” A expressão “algo de inconveniente” é muito vaga. Alguns estudiosos entendem que se trate de “algo depreciativo” que teria sido encontrado na mulher, tornando a continuidade do matrimônio algo impraticável.[2]
A expressão é tão vaga que gerou muita discussão no que diz respeito à sua interpretação nas escolas rabínicas. No texto em questão, Jesus fala do divórcio admitindo como única exceção o caso de “união irregular”, ou “fornicação”, que são tentativas de se traduzir o termo grego “pornéia”.[3] Muita discussão existe em torno do significado desse termo. Ele não significa simplesmente “adultério” ou “fornicação”. Em Nm 14,33 o termo é compreendido, por exemplo, como “infidelidade”. O termo pode designar, sim, adultério, prostituição, mas também outras atitudes desonestas e até mesmo a idolatria.[4]
Tradicionalmente se compreende esse termo como se referindo a um matrimônio não legítimo, por alguma razão.[5] É assim, por exemplo, que o interpreta Dom Estêvão Bettencourt, OSB, afirmando que se deve compreender por detrás do grego “pornéia” o aramaico “zenut”[6] que, tal como o sinônimo hebraico pode significar “fornicação”, “infidelidade”, “prostituição”, “adultério” etc, mas que, na compreensão rabínica servia para designar “uniões ilegítimas”, que não seguiam as prescrições do Levítico, como aquelas de Lv 18,16 que impede o homem de “descobrir a nudez” da esposa do irmão, enquanto, é claro, este ainda vive (porque caso morresse sem filhos era previsto que cumprisse a lei do levirato), e de Lv 18,17, que impede o homem de “descobrir a nudez” de uma mulher e sua filha ou das próprias netas. Como tais uniões podiam ser contraídas entre pagãos, mas não entre os judeus, pode ser que a “cláusula” que parece gerar uma exceção para o divórcio em Mateus seja uma forma de resolver tais problemas numa comunidade como a do evangelista formada por cristãos oriundos do judaísmo. Tais uniões, contrárias à Lei Mosaica, deviam ser dissolvidas, porque ilegítimas.[7]
Seja como for a interpretação que se dê a este versículo, fato é que nos textos paralelos de Mc 10,11-12 e Lc 16,18, não se fala de nenhuma possibilidade de repúdio ou divórcio. O Cristo amplia o sentido da Lei, mostrando que não é lícito ao homem desfazer uma união feita pelo próprio Deus a partir do consenso daqueles que escolhem o matrimônio. Em Mt 19,1-9 o tema vai retornar e Jesus vai remeter seus interlocutores ao a Gn 1,27 e Gn 2,24, afirmando que o divórcio foi dado em virtude da “dureza do coração do homem” e que “no princípio” este não fora o projeto de Deus.
O último ensinamento diz respeito aos juramentos. Se a Lei previa que não fizesse o juramento falso, agora o Cristo incita os cristãos a não jurar “de modo nenhum”. A palavra do cristão deve ser reta e uma só: “Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não”. Tudo o que estiver além disso não provém de Deus, mas do maligno.
Eis diante de nós, plenamente manifesta, a “misteriosa sabedoria de Deus”, da qual nos fala São Paulo na segunda leitura de hoje. Se quisermos estar um dia face a face com o Senhor, o caminho é este: o da escuta obediente da Palavra.
Abramos o nosso coração ao Cristo, verdadeiro intérprete da Lei. Deixemos que Ele nos ensine a viver de modo profundo os seus mandamentos. Que na força do seu Espírito possamos sair da superficialidade, a fim de começarmos a viver de modo cada vez mais comprometido e autêntico a sua Palavra.
[1] Cf. BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette. p. 1572.
[2] “algo que é depreciativo”: esta é a tradução apresentada em Koheler & Baumgartner. Vol. I. p. 882, para a expressão hebraica ’erwat dabar.
[3] Mais que o termo, a expressão completa “logou pornéia”.
[4] Cf. BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette. p. 1607.
[5] Cf. ALONSO-SCHÖKEL. Bíblia do Peregrino. p. 2328.
[6] Cf. Koheler & Baumgartner. Vol. I. pp. 275-276.
[7] Cf. BETTENCOURT, Estêvão. Curso Sobre os Sacramentos. Escola Mater Ecclesiae, p. 202 (primeira edição); cf. tb. Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 1995 (7ª impressão), p. 1874, nota “a”.