At 2,14a.36-41
Sl 22
1Pd 2,20b-25
Jo 10,1-10
Eu sou a porta das ovelhas…
O Evangelho que hoje ouvimos, neste tempo solene da Páscoa do Senhor, neste dia da nossa alegria, que é o Domingo, “Dia do Senhor” e “senhor dos dias”, nossa Páscoa semanal, nos apresenta a primeira parte do capítulo 10 do evangelho de São João e é para nós uma experiência viva do Ressuscitado que, no meio da assembleia eucarística, nos comunica, no poder do Espírito Santo, a sua Palavra, que é viva e eficaz, “cortante como espada de dois gumes” e capaz de ultrapassar “ossos e medulas” (cf. Hb 4,12).
Na sua disputa com os fariseus Jesus lhes apresenta uma parábola. Jesus lhes afirma que “quem não entra pela porta no redil das ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante”, todavia “o que entra pela porta é o pastor das ovelhas”. Nestes dois versículos Jesus já apresenta aos seus interlocutores duas imagens que vão ser explicadas no decorrer do seu discurso: a imagem da porta e a imagem do pastor.
Jesus está falando aqui de si mesmo: Ele é a porta e Ele é, também, o pastor das ovelhas. Depois desta introdução Jesus lhes apresenta uma outra imagem: “(…) as ovelhas ouvem a sua voz e ele chama as suas ovelhas, cada uma por seu nome e as conduz para fora. Tendo feito sair todas as que são suas, caminha à frente delas e as ovelhas o seguem, pois conhecem a sua voz.” Jesus é o verdadeiro pastor que entra pela porta e que chama as ovelhas que são suas. Jesus entra no redil das ovelhas para conduzi-las para fora.
Segundo alguns autores[1] a imagem do redil aqui corresponde ao do átrio do Templo de Jerusalém. A imagem que estaria por trás desse dito de Jesus seria aquela do Cristo, que entra no átrio do Templo de Jerusalém e chama as ovelhas que são suas para fora, para o seu seguimento. Não podemos nos esquecer que por trás desse dito do Senhor subjaz o julgamento dos maus pastores de Ezequiel 34. Os maus pastores de Israel não conduziram o povo segundo o coração de Deus.
Jesus afirma em outra passagem que os fariseus são aqueles “que devoram as casas das viúvas” (Lc 20,47; Mc 12,40) fingindo fazer longas orações. Portanto, os maus mestres, os maus doutores da Lei e os maus fariseus podem ser identificados aqui com os ladrões e assaltantes, com os maus pastores, que não pastorearam o rebanho para o bem do próprio rebanho, mas pensando somente no seu lucro. Daí o julgamento severo do Cristo sobre eles e a sua entrada pela porta do Templo, como pastor das ovelhas, para chamar as que são suas, ou seja, as que aderem ao seu chamado, para que venham para fora. Cristo chama as ovelhas cada uma por seu nome e as conduz para fora. Quando elas estão reunidas Ele caminha à frente delas e elas o seguem.
Para onde as ovelhas o seguem? Não somente para pastagens seguras aqui, mas as ovelhas o seguem para o seu Reino. Afinal de contas, Ele foi a fim de preparar-nos um lugar para que estejamos um dia junto d’Ele (cf. Jo 14). Aqui também se esclarece para nós a imagem do Salmo 22 que acabamos de cantar. Cristo é o pastor que nos conduz para as “águas repousantes” que brotam do trono do Cordeiro visto por João no Apocalipse. Cristo é Aquele que nos conduz para a casa do Senhor, onde, segundo o salmista, habitaremos “pelos tempos infinitos”.
Os interlocutores de Jesus não entendem o sentido da parábola e Jesus retoma, então, o seu discurso, não num tom explicativo, mas como que continuando e desenvolvendo o sentido da dupla imagem, a da porta e a do pastor, que Ele apresentou no início do seu discurso. Agora, no versículo 7, Cristo afirma ser Ele, também, a porta. O Mestre afirma: “(…) eu sou a porta das ovelhas” (cf. v. 7) e ainda novamente no v. 9 “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem”.
Cristo é a porta em dois sentidos. Em primeiro lugar, Ele é a porta pela qual as ovelhas podem ter acesso à salvação: “Se alguém entrar por mim, será salvo”. Não existe outro caminho, outra porta para a salvação a não ser o Cristo. Ele é o caminho que conduz à vida: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.
Em segundo lugar, Ele é a porta que dá acesso às ovelhas. Nele as ovelhas estão protegidas e ninguém pode ter acesso às ovelhas se não passar por Ele. Neste sentido, esta palavra de Cristo pode ser aplicada aos que recebem o encargo de pastorear em seu nome. Ninguém pode se tornar pastor do rebanho de Cristo se não passar pela porta, que é Ele mesmo, fazendo-se, também, ovelha. Ninguém pode pastorear na Igreja de Deus se não estiver unido a Cristo e se não reconhecer que Ele é o único pastor. Isto entendeu o grande Santo Agostinho, quando afirmava em seus escritos, dirigindo-se aos seus súditos: “Para vós sou bispo, convosco eu sou cristão”. Em outras palavras, em primeiro lugar eu sou ovelha, eu entro pela porta que é Cristo e me torno membro do seu rebanho. Depois, para melhor servi-lo nos irmãos, eu me torno um sacramento do seu pastoreio, mas sem nunca me esquecer que eu pastoreio em nome de Outro e é isto que torna legítimo o meu pastoreio.
Cristo é o verdadeiro pastor, o “bom pastor”, segundo o que Ele mesmo vai dizer na continuação desta perícope, no v.11 deste cap. 10 do evangelho de São João. Cristo é o Bom Pastor, o Pastor ferido que dá a sua vida pelo rebanho.
Essa imagem do Bom Pastor ferido por nosso amor nos é trazido por Pedro, na segundo leitura de hoje. Pedro convida seus irmãos de fé a aceitarem com paciência o sofrimento por terem feito o bem, porque isso nos torna agradáveis diante de Deus.
Aceitar com paciência a tribulação que nos advém de maneira inesperada e, muitas vezes, até mesmo porque fazemos o bem, nos torna, segundo o Apóstolo, semelhantes a Cristo, que, não cometendo pecado algum, foi injuriado e não respondia às injúrias. Suportar com paciência os sofrimentos nos torna semelhantes a Cristo que, na cruz, carregou sobre si os nossos pecados, para que vivamos uma vida nova com Ele. Antes, andávamos como ovelhas perdidas. Agora, em Cristo, voltamos “ao pastor e guarda de nossas vidas” (cf. Sl 22). Pelo seu sacrifício Cristo tomou sobre si os nossos pecados e nos reuniu de novo, para que, como ovelhas obedientes e que conhecem a voz do pastor, o sigamos até os prados tranquilos para os quais Ele mesmo nos conduz, caminhando à nossa frente.
Sejamos nós, hoje, como aquela seleta assembleia do Dia de Pentecostes. Hoje nós ouvimos o final do discurso de Pedro no dia de Pentecostes. Diante da afirmação de Pedro a respeito de Cristo – “Que todo o povo de Israel reconheça com plena certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vós crucificastes” – Lucas noz diz que a assembleia ficou com o “coração aflito”. O verbo utilizado por Lucas, contudo, significa algo mais que isso. Eles ficaram com o coração “transpassado pela dor”.[2] A Palavra de Deus, que vem impregnada da força do Espírito, é mesmo uma espada de dois gumes, é uma lâmina afiada que separa ossos e medulas (cf. Hb 4,12) conforme dizíamos acima.
Essa Palavra, proferida por Pedro no dia de Pentecostes, atinge em cheio o coração dos seus ouvintes. Transpassados pela Palavra eles perguntam a Pedro e aos apóstolos: “Irmãos, o que devemos fazer?” Pedro os chama a conversão e ao batismo, ou seja, a salvarem-se da gente corrompida. Lucas encerra este trecho que acabamos de ouvir dizendo que naquele dia, “mais ou menos três mil, pessoas se uniram a eles”.
A cada Domingo, como no dia de Pentecostes, também nos reunimos em nossas igrejas e a Palavra nos é anunciada. É o próprio Cristo que a anuncia no Evangelho[3]. A sua Palavra proclamada sobre nós deve também nos transpassar. Diante de tudo o que ouvimos hoje devemos também estar como aquela assembleia nos perguntando sobre o que devemos fazer.
Abramos os ouvidos do nosso espírito para que sejamos capazes de ouvir hoje a voz do Cristo e de segui-lo aos prados verdejantes e às águas tranquilas, até a mesa do banquete que Ele prepara para nós nas moradas eternas, onde também nós, que somos suas ovelhas, que dissemos sim à sua Palavra, teremos uma morada.
Rezemos também hoje pelos nossos pastores. Que não faltem bons pastores, mas que também as ovelhas sejam dóceis e obedientes. Sobretudo, rezemos para que as ovelhas saibam discernir a voz dos pastores e a voz dos lobos. Os pastores legítimos são aqueles aos quais o próprio Cristo confiou o seu rebanho. Ninguém pode se auto-intitular pastor e guia do povo, sem que tenha recebido isso de um outro que, por sua vez, o recebeu de Cristo. Rezemos, enfim, uns pelos outros, para que nestes tempos difíceis, onde tantos lobos têm se insinuado no meio do rebanho, o nosso ouvido de ovelhas possa estar atento, a fim de que sigamos somente a voz do Bom Pastor. E que a voz dos legítimos pastores da Igreja seja para nós como um eco, da voz do Único e Supremo Pastor.
[1] Cf. Léon-Dufort, Xavier. Leituras do Evangelho segundo João. Vol II. p 250.
[2] Trata-se do verbo katanússomai, que significa “furar com alguma coisa pontuda”, “transpassar”. Aqui pode ser entendido em sentido figurado como “ser transpassado pela dor”.
[3] cf. SC 33