Dt 18,15-20
Sl 94 (95)
1Cor 7,32-35
Mc 1,21-28
“Não fecheis o coração, ouvi hoje a voz de Deus”
Reunidos para celebrar a Eucaristia Dominical, nossa Páscoa semanal, temos o privilégio de poder acolher, de poder ouvir a Palavra de Deus. Tantas e tantas vezes queremos que Deus nos diga algo, que Ele nos aponte um caminho e não nos damos conta de que Ele nos fala sempre, sobretudo quando reunimos, cada domingo, como um corpo de batizados, para ouvir sua Palavra.
Hoje a Palavra de Deus fala-nos sobre a importância da “escuta”. Na primeira leitura temos um trecho do livro do Deuteronômio onde Deus, pela boca de Moisés, seu servo, comunica ao povo que ele não ficará sem a sua Palavra, porque depois de Moisés Ele há de suscitar um outro profeta, e a esse também o povo deve “escutar”.
Deus poderia falar com cada um em particular, mas Moisés recorda ao povo que esta foi a escolha feita pelo próprio povo no Monte Horeb: Deus lhes falaria por meio de Moisés. O autor sagrado atribui a instituição da profecia ao acontecimento relatado em Ex 20,18-21, onde ao ouvir o som da trombeta e ao ver trovões e relâmpagos e a montanha (o Horeb) em chamas, o povo teve medo e pediu a Moisés que ele fosse, a partir de então o seu intermediário a fim de trazer-lhes a Palavra do Eterno.
A promessa de Deus implica bênção e maldição, bem na linha da teologia deuteronomista, tanto para o profeta, quanto para o povo. Com relação ao profeta, Deus lhe dará a Sua Palavra, a qual ele deve transmitir ao povo. Essa é a bênção de Deus para ele. Mas, se ele transmitir em nome de Deus uma Palavra que Deus não lhe falou ou se falar em nome de outros deuses, isso acarretará a sua morte, eis a maldição que acompanhará a desobediência. Com relação ao povo, este será abençoado pela presença do profeta e, consequentemente da Palavra do Eterno. Todavia, quem não der ouvidos ao profeta incorrerá no castigo dos desobedientes, que não é mencionado, mas que implica em “dar contas a Deus” da Palavra recebida e não ouvida e nem posta em prática.
O Salmo 94 serve muito bem de resposta a este trecho do Deuteronômio. Ele é chamado de “Salmo Invitatório” porque é um convite a louvar ao Senhor, a ir ao seu encontro. Chama-nos a atenção o v. 8 que, segundo a divisão em versículos da LXX são os v. 7b – 8a: “Se ouvirdes hoje a voz de Deus não endureçais os vossos corações”. O autor sagrado utiliza o verbo skleróu, donde vem em português termos como esclerose, para dizer o que “não deve” acontecer com o nosso coração. Ao recebermos a Palavra de Deus não devemos “endurecer o nosso coração”, ou seja, não devemos fechá-lo, mas devemos deixá-lo aberto a fim de que a mesma Palavra de Deus possa encontrar em nós acolhida, possa ser ouvida e, é claro, posta em prática.
O evangelho de hoje também vai nos falar sobre a importância de “escutar” a voz de Jesus. Estamos no início do evangelho de Marcos, logo depois do chamado dos quatro primeiros discípulos, e Jesus entra na sinagoga, no dia de sábado. Como Mestre que é, Jesus começa a ensinar, e o seu ensinamento causa a “admiração”[1] de todos, porque Jesus ensina com “autoridade” e não como os mestres da Lei.
O termo “autoridade” tem um sentido muito peculiar. Algumas vezes o tomamos de maneira negativa, no sentido de “autoritarismo”. Originalmente, contudo, ele é um composto de duas palavras, o prefixo grego ek e o substantivo ousia. O prefixo ek significa o “lugar de origem” de alguma coisa. O termo ousia, por sua vez, significa “substância”. Jesus falava a “partir de si mesmo”. Ele é o que tem, por excelência, a “autoridade” para falar, porque Ele é a “fonte da Palavra”, mais ainda, “Ele é a Palavra” que fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1,14). Por isso, o seu ensinamento chama tanto a atenção dos seus ouvintes.
Jesus inaugura um novo tempo, que vem marcado pela força da sua Palavra. Um homem possuído por um espírito impuro começa a falar e Jesus, apenas com o poder da sua Palavra, exorciza esse demônio. A vinda de Jesus inaugura o “tempo novo” marcado por uma luta entre o Reino dos Céus e o reino de Satanás, mas esta é uma luta que já está vencida, porque ressuscitando dos mortos, Cristo venceu a morte.
No final do trecho evangélico Marcos nos reporta, outra vez, a estupefação dos discípulos, agora utilizando o verbo grego thambeo. Logo em seguida vem uma pergunta, que vai aparecer também em Mc 4,41. Aqui em Mc 1,27 todos se perguntam: O que é isto? Esta pergunta é feita diante do ensinamento de Jesus e da sua ação contra os demônios. Chama a atenção de todos que ele mande nos “espíritos impuros” e eles lhe obedeçam e que o seu ensinamento seja “novo” e “dado com autoridade”. Em Mc 4,41, depois de acalmar o mar, os discípulos se perguntam: Quem é este? Chama a atenção dos discípulos que ele mande no “vento e no mar” e que estes lhe “obedeçam”.
Gostaria de chamar a atenção em primeiro lugar para o fato de o ensinamento de Jesus ser “novo” e “dado com autoridade”. Em que sentido o ensinamento de Jesus é novo? No sentido de que Ele veio como o verdadeiro intérprete de tudo o que Deus, até então, tinha-nos dito através da Escritura do Antigo Testamento. O seu ensinamento é “dado com autoridade” porque ele não fala a partir de algo que está externo a Ele, mas fala a partir de si mesmo. Ele é a Palavra e, por isso, Ele nos fala a partir de si, com autoridade plena, levando-nos a contemplar n’Ele a imagem perfeita das realidades que Ele nos anuncia.
Em segundo lugar seria interessante olhar para a primeira leitura, o salmo e a atitude dos demônios em Mc 1,27 e do vento e do mar em Mc 4,41. Os demônios “obedecem” a Jesus, e saem do homem. O vento e o mar “obedecem” a Jesus e se acalmam. A primeira leitura e o salmo são um convite a “ouvirmos” e a “obedecermos” a Jesus. O verbo obedecer utilizado por Marcos no seu evangelho é um composto do verbo ouvir (akouo), trata-se do verbo hypakouo. Precisamos “ouvir” e “obedecer”, porque senão o nosso ouvir não foi autêntico.
Que nessa liturgia que hoje celebramos nossa oração possa subir fervorosa para junto do trono de Deus a fim de que Ele, pela força do seu Espírito de amor, nos ajude a ouvir com “ouvidos de discípulo” a sua Palavra e que nós a coloquemos em prática, todos os dias da nossa vida.
[1] Marcos utiliza aqui o verbo grego ekplésso que aparece também em 6,2; 7,37; 10,26; 11,18.