1ª Leitura: Ex 20,1-17
Sl 18
2ª Leitura: 1Cor 1,22-25
Evangelho: Jo 2,13-25
Estamos celebrando este tempo feliz da Quaresma, onde temos a grata oportunidade de nos voltar para o Senhor, conforme a exortação do profeta Joel na quarta-feira de cinzas (cf. Jo 2,12-18), e de dar passos concretos na busca sincera de uma conversão pessoal e comunitária em vista da grande celebração anual da Páscoa, mistério central da nossa fé.
Os textos bíblicos proclamados neste período do ano litúrgico nos ajudam nesse processo de conversão, seja nos recordando o que o Senhor espera de nós (cf. primeira leitura – os “mandamentos”), seja nos fazendo olhar para o Cristo crucificado, “sabedoria de Deus” (cf. segunda leitura), cujos passos rumo à paixão queremos imitar, a fim de que, entrando em comunhão com Ele no mistério de sua morte, possamos estar plenos da certeza de que também estaremos em comunhão com Ele na sua glória (cf. Rm 6,5).
Neste ciclo de leituras do ano B, os evangelhos proclamados no terceiro, quarto e quinto domingos da Quaresma, fazem nosso olhar se dirigir para o mistério da Paixão do Senhor: o Templo que será reedificado em três dias (terceiro domingo); o Filho do homem que será levantado da terra (quarto domingo) e o grão de trigo que cai na terra e morre para produzir muito fruto (quinto domingo).
O evangelho deste terceiro domingo pode ser dividido em duas partes: aproximando-se a “Páscoa dos judeus” Jesus purifica o Templo, expulsando dele os vendilhões (cf. Jo 2,13-22); durante a festa da Páscoa Jesus vai a Jerusalém e realiza “sinais” (cf. Jo 2,23-25).
A primeira parte do evangelho, Jo 2,13-22, pode ser subdividida em duas partes (vv.13-17 e 18-22), sendo cada uma delas finalizada por uma menção do narrador, que nos recorda como depois estas ações de Jesus foram recordadas pelos discípulos (vv. 17 e 22).
Nos vv. 13-17 encontramos a “purificação do Templo”. Enquanto os evangelhos sinóticos colocam esse momento da vida de Jesus já no final da sua vida pública, João o coloca bem no início, talvez por razões teológicas. É possível que João quisesse apresentar o Cristo, já no início da sua vida pública, como o Messias que purifica o Templo e os filhos de Levi (cf. Ml 3,1-3), purificação essa que seria sinal dos últimos tempos, da vinda escatológica do Senhor.[1] Jesus expulsa do Templo não somente os cambistas e os vendedores de animais, mas também os animais, declarando-se “a verdadeira vítima”[2] e realizando a profecia de Zc 14,21: Naquele dia, não haverá mais vendedores na casa do Senhor. Este trecho do evangelho termina com uma nota do narrador: Recordaram-se, seus discípulos, do que está escrito: O zelo por tua casa me devorará (v. 17). Essa citação do Salmo 69(68),10 nos mostra como os discípulos, depois da Páscoa, foram capazes de compreender sob uma nova luz as palavras e as ações de Jesus, e como perceberam que, de fato, as Escrituras apontavam para Ele (cf. Lc 24,44).
Nos vv. 18-22 aparecem na cena “os judeus”. Sem especificar nenhum grupo dentro do judaísmo, João mostra de forma genérica a oposição que Jesus enfrenta da parte dos “judeus”. Eles querem um “sinal” que justifique o motivo de sua ação. Jesus não se nega a oferecer um sinal, e afirma no v. 19 qual será esse sinal: Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei. Aparecem dois verbos importantes nessa frase de Jesus: o verbo “lyo”, que aparece mais cinco vezes em João (cf. Jo 1,27; 2,19; 5,18; 7,23; 10,35; 11,44) e o verbo “egheiro”, que aparece mais doze vezes no evangelho de João (cf. Jo 2,19.20.22; 5,8.21; 7,52; 11,29; 12,1.9.17; 13,4; 14,31; 21,14).
O verbo “lyo” pode ser traduzido de muitas formas: desatar, desamarrar, soltar, destruir. Desse verbo provêm os verbos latinos luo e soluo/solvo. Ele pode significar “destruir/abater”, tanto um corpo quanto um edifício.[3] Também o verbo “egheiro” pode ser traduzido por mais de um verbo em português. Algumas vezes ele é traduzido apenas por “levantar/levantar-se”, como em Jo 2,19, mas ele também pode ser traduzido como “ressuscitar”. É esse sentido de “ressuscitar” que ele adquire em Jo 2,22; 5,21; 12,1.9.17 e 21,14, sendo que, nesta última passagem, assim como em Jo 2,22, o verbo refere-se especificamente à ressurreição do próprio Cristo. Assim como o verbo “lyo”, o verbo “egheiro” pode, pois, significar o “levantar/edificar” um edifício ou um corpo (ressuscitar alguém). [4]
O autor do quarto evangelho nos apresenta, assim, um sentido oculto nas Palavras do mestre, o qual não fora compreendido pelos judeus (v. 20), mas sim pelos discípulos, depois da ressurreição (v. 22): Jesus não falava do Templo feito de pedras, mas do Templo do seu corpo. Ele é o Templo e também o sacrifício. No Batismo, fomos configuramos com Cristo, e nos tornamos, também nós, “Templo de Deus”, chamados a fazer da nossa vida um “sacrifício de louvor”, renunciando-nos a nós mesmos para “seguir o Cristo” (cf. Mc 8,34), porque só Ele tem palavras de vida eterna, as quais são “mais doces que o mel” (cf. Salmo 18 – Salmo Responsorial).
O Evangelho termina com a presença de Jesus na festa da Páscoa realizando “sinais”. João não diz quais foram esses “sinais”, mas afirma que muitos acreditaram em Jesus por causa deles. Contudo, Jesus não “crê” nesses que parecem “crer” em seu nome. Muito além das aparências, o olhar de Jesus penetra no íntimo do homem: ele conhece o que está no homem (v. 25). Assim como afirma o Salmo 139 (138) que nada pode ficar oculto aos olhos do Pai, porque estes esquadrinham tudo, até mesmo as trevas mais densas, assim também nada fica oculto aos olhos do Cristo, pois seu olhar penetra as trevas mais densas de todas: o profundo do coração humano.[5] O Senhor nos conhece melhor do que nós mesmos nos conhecemos e sabe de cada movimento do nosso coração.
Deixemo-nos ser penetrados, hoje, por esse olhar que tudo esquadrinha e diante do qual nada pode ficar oculto. Que o olhar do Cristo penetre até o mais profundo das nossas trevas interiores. Que o Cristo desça onde temos medo de descer e olhe para o que tememos olhar. Seu olhar ilumina tudo, cura tudo, transforma tudo… Deixemos que Ele nos ilumine com sua luz, a fim de que acompanhando-o rumo à sua Paixão neste período quaresmal, possamos com Ele ressuscitar na grande Solenidade Pascal.
[1] Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leituras do Evangelho segundo João. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1996, p. 193.
[2] Cf. ZEVINI, G. et CABRA, Pier Giordano. Lectio Divina per ogni giorno dell’Anno: vol. 3 – Tempo di Quaresima e Triduo Pasquale. Brescia: Queriniana, 20077, p. 179.
[3] SCHNACKENBURG, R. Il Vangelo di Giovanni. Vol. I: Brescia: Paideia, 1973, p. 504.
[4] SCHNACKENBURG, R. Il Vangelo di Giovanni. Vol. I: Brescia: Paideia, 1973, p. 504.
[5] SCHNACKENBURG, R. Il Vangelo di Giovanni. Vol. I: Brescia: Paideia, 1973, p. 516.