At 3,13-15.17-19
Sl 4,2.4.7.9 (R.7a)
1Jo 2,1-5a
Lc 24,35-48
O Tempo da Páscoa que estamos celebrando, deve ser vivido como se fosse um único e “grande Domingo”. A expressão é de Santo Atanásio e encontra-se numa de suas Epístolas.[1] Neste tempo celebramos nossa “renovação espiritual” pois, pelo Batismo, fomos sepultados da morte com Cristo e ressurgimos com Ele para uma vida nova (cf. Rm 6,4). Este tempo é, para nós, uma antecipação da vida futura, pois, tendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, também nós esperamos “com plena confiança o dia da ressurreição”.[2]
O Evangelho, coração de toda a Liturgia da Palavra, nos apresenta uma das aparições do Ressuscitado aos seus discípulos. No caminho para Emaús, dois dos discípulos reconhecem Jesus “ao partir o pão”. Eles retornam para Jerusalém a fim de dar seu testemunho aos demais irmãos. Enquanto ainda estão falando, nos afirma o Evangelista Lucas que o “próprio Jesus” se colocou no meio deles. Mais uma vez, o dom do Ressuscitado é a “paz”. Sua presença, sinal da vitória sobre a morte, é a verdadeira paz que o mundo procura e precisa.
Lucas nos mostra um misto de sentimentos que tomam conta do coração dos discípulos: eles estão assustados, cheios de medo, mais adiante Lucas vai dizer que eles não podiam crer por causa da alegria… O Senhor, contudo, insiste para que os discípulos olhem, toquem e vejam que não é um fantasma, mas Ele mesmo, o Senhor, vivo e ressuscitado no meio dos seus. Ele toma o alimento e o come diante dos discípulos, a fim de que eles possam crer que não se trata de uma ilusão.
A partir do v. 44 Jesus começa a fazer com os discípulos o mesmo que havia feito com os discípulos de Emaús no caminho. Jesus começa a lhes mostrar que n’Ele se cumprem as Escrituras: a Lei de Moisés, os Profetas e os Salmos. Lucas resume nestes três blocos o conjunto de todo o Antigo Testamento, que no mundo judaico é tripartido: a Lei, os Profetas e os Escritos, sendo este último bloco aberto pelo livro dos Salmos. O Senhor Jesus não somente explica aos discípulos que n’Ele se cumprem as Escrituras, mas, também, lhes abre a inteligência para que possam entender as mesmas Escrituras.
A perícope termina com as seguintes palavras de Jesus (cf. vv. 46-48): Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome serão anunciados a conversão para o perdão dos pecados[3] a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso. Com a expressão “assim está escrito” Jesus não introduz uma citação bíblica, mas de certa forma resume no seu Mistério Pascal todo o conjunto das Escrituras. O seu Mistério Pascal, sua morte e ressurreição, é a chave de leitura de toda a Escritura Sagrada. É a luz desse mistério que tudo pode ser compreendido. Tudo apontava para o Cristo e n’Ele a história salvífica é não somente recapitulada, mas atinge a sua plenitude. No seu “Nome”, ou seja, na força da sua própria pessoa, com a autoridade que d’Ele emana, os apóstolos devem anunciar “a conversão para o perdão dos pecados”.
Eis o núcleo do anúncio apostólico: “Cristo Ressuscitou, por isso, convertei-vos!” Não é exatamente isso o que encontramos na primeira leitura? Depois de curar, juntamente com João, o aleijado que pedia pelo caminho, Pedro se dirige ao povo. O seu discurso se resume exatamente no que Jesus acaba de dizer no fim do Evangelho: Cristo Ressuscitou e n’Ele se cumpriram as Escrituras; agora, nós devemos nos “converter” e “voltar para o Senhor”. O v. 19 reúne dois verbos: o verbo metanoéo, normalmente traduzido como “arrependei-vos”, mas que soa melhor quando traduzido como “convertei-vos”, porque se trata, sem dúvida, de uma guinada, de uma mudança de direção, no agir e, sobretudo, no pensar; junto ao verbo metanoéo encontramos o verbo hepistrépho, que algumas vezes, na LXX, traduz o verbo hebraico “shuv”, que significa “voltar” e é muito usado no Antigo Testamento para indicar a atitude de quem buscar converter-se, ou seja, “voltar para Deus” (cf. Os 14,2; Ml 1,4; 2,6; 3,7.18).[4]
A pregação de Pedro na primeira leitura se dirige a cada um de nós, reunidos para celebrar o Dia do Senhor. Conscientes de que o Senhor Ressuscitou e de que n’Ele se cumpriram as Escrituras, somos chamados à conversão, a voltar para Ele de todo o nosso coração. E se pecarmos, não devemos nos desesperar, pois João nos consola na segunda leitura: …se alguém pecar, temos junto do Pai um defensor (Paráclito): Jesus Cristo, o Justo. Voltemos, com confiança, para junto do Senhor. Ele nos recebe sempre de braços abertos e aceita nos dar o perdão e a vida nova se a Ele vamos de coração sincero e desejoso de receber sua graça. Que a alegria da Ressurreição seja o nosso impulso para buscarmos uma vida nova. Não nos desanimemos nunca por causa do pecado, mas recordemos sempre que, quando caímos, existe alguém que nos levanta: o Senhor… Ele nos levanta hoje do pecado e nos levantará um dia da sepultura, dando-nos a vida eterna junto d’Ele.
[1] “Jam cum nobis id tempus sit futuri mundi symbolum, magnam Dominicam celebrabimus, arrham hic futurae illius aeternae vitae.” (Santo Atanásio. Epistola Festalis I. PG 26,1366)
[2] Cf. Oração Coleta.
[3] O texto grego traz: “a conversão para o (ou, em vista do) perdão dos pecados”. O texto latina, por sua vez, justapõe o termo “conversão” ao sintagma “perdão dos pecados”, trazendo o texto conforme vemos traduzido no lecionário “a conversão e o perdão dos pecados”.
[4] Transliteramos como “shuv” por se tratar de um texto de divulgação. Tal transliteração não segue os padrões internacionais presentes nas gramáticas científicas.