1ª Leitura: At 4,32-35
Sl 117
2ª Leitura: 1Jo 5,1-6
Evangelho: Jo 20,19-31
Esse domingo é conhecido na tradição cristã como o Domingo In Albis, porque era neste dia que os neófitos depunham a túnica branca recebida no batismo. A coleta da Missa nos conecta com o tema da iniciação cristã e da mistagogia que se seguia durante todo o tempo pascal: “Fazei que compreendamos melhor o Batismo que nos lavou…” diz o texto. Agora, começado o tempo pascal, era hora de o bispo fazer as assim chamadas catequeses mistagógicas, explicando os sinais e os ritos que os neófitos haviam experienciado pela primeira vez na noite da Grande Vigília.
A primeira leitura é um trecho do livro dos Atos dos Apóstolos, que tem seu paralelo no início do próprio livro em 2,42-47, que nos apresenta uma síntese de como era a vida da comunidade dos primeiros cristãos. Cinco pontos poderíamos destacar aqui: (1) estavam eles unidos de coração e alma; (2) viviam na lógica da berakah e da partilha e não na lógica da posse; (3) os apóstolos testemunham com grande “poder” a ressurreição de Cristo, realizando milagres que confirmavam a sua pregação; (4) eles, os apóstolos, eram aceitos como autoridade na comunidade; (5) não havia nenhum necessitado entre eles. São pontos importantes que nos manifestam como a realidade da ressurreição produzia seus efeitos no coração dos crentes. O centro da pregação dos apóstolos era o fato mesmo da “ressurreição” e não outras coisas. Os próprios milagres realizados por estes tinham apenas como finalidade única e exclusiva corroborar a pregação. Os milagres, nem os de Cristo, nem mesmo os dos apóstolos, eram um fim em si mesmos. Tinham como finalidade corroborar a Palavra anunciada. Esta realidade precisa ser hoje recuperada na mente dos cristãos, porque tal como outrora e, quiçá, em todas as épocas da humanidade, as contingências da vida fazem com que se queira ceder diante das possibilidades e promessas de uma vida de facilidades, inclusive no âmbito espiritual. Se procurar hoje uma religião que possa trazer benefícios materiais aos homens. Essa é apenas mais uma forma refinada de hedonismo. A fé cristã é sobretudo fé na ressurreição.
O Salmo 117 é o grande Hino Pascal cantado na Vigília, no Domingo de Páscoa e nos três últimos dias da oitava. Esse Salmo encerra o Hallel que é composto pelos Salmos 113A, 113B, 114-115, 116 e 117. O Hallel começa recordando a saída do Egito e termina com a proclamação do amor eterno de YHWH e com o convite a toda a comunidade a cantar os seus louvores: “Celebrai ao Senhor, porque ele é bom, porque o seu amor é para sempre!” O termo utilizado aqui para indicar o amor de Deus por seu povo é o termo hesed, que ocorre 245 vezes no Antigo, sendo que destas 245 ocorrências, 127 se dão nos Salmos. O hesed de Deus é eterno porque é desde sempre e dura, conforme a expressão hebraica, leolam, ou seja, para sempre. Israel experimenta o hesed de Deus em toda a sua história salvífica, história essa que se tornou plena na Ressurreição de Cristo. Nós cristãos, com muita propriedade, podemos cantar o Salmo 117 celebrando o hesed de Deus que é leolam, uma vez que a Ressurreição de Cristo é o ato absoluto de amor da Trindade por nós e é penhor da vida futura que também nos aguarda.
Na segunda leitura, João na sua primeira epístola apresenta a adesão a Cristo pela fé como um novo nascimento. A fé é também, para o cristão, símbolo da sua vitória. A vitória que vence o mundo é a nossa fé, afirma João. Nessa perícope, o Apóstolo e Evangelista, nos apresenta uma dupla dimensão do amor: o amor a Deus e o amor aos filhos de Deus. O verdadeiro amor aos cristãos, aos filhos de Deus, tem como termômetro o amor que temos em primeiro lugar ao próprio Deus. Imediatamente somos transportados para o capítulo anterior da mesma epístola e nos deparamos com 4,20 que diz: “Se alguém disse: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar.” O autor sagrado nos dá ainda um outro “termômetro” agora para verificarmos a medida do nosso amor por Deus: amar a Deus é o mesmo que guardar os seus mandamentos. Quem não guarda os mandamentos, quem não guarda a Palavra, esse não está ainda na verdadeira dinâmica do amor a Deus. Aqui está a raiz última, pela qual vamos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos: guardando os mandamentos.
O evangelho nos coloca em contato com uma das aparições do ressuscitado: a segunda, segundo o Evangelho de João. A primeira fora aquela à Maria Madalena, ainda no jardim onde estava o sepulcro. Agora Cristo aparece aos discípulos, que estavam reunidos a portas fechadas. O primeiro dom do Ressuscitado aos seus discípulos é a PAZ! De fato, nele está a nossa paz. A Sua Ressurreição curou em nós a chaga da falta de fé e abriu para nós as portas do Reino Eterno. Nesse encontro encontramos um “segundo Pentecostes joanino”, porque Cristo, que na cruz havia entregue “o Espírito”, agora sopra sobre os discípulos e lhes dá o “Espírito” em vista de uma missão específica: reconciliar os homens com Deus, sendo portadores do perdão. O Cristo comunica a paz que brotou das suas chagas, do seu sacrifício, por isso Ele imediatamente expõe aos discípulos as mãos e o lado aberto. A paz do Cristo enche de alegria o coração dos discípulos, que são enviados em missão, para comunicar a outros a paz de Cristo e a alegria da Ressurreição. Cristo os envia como o próprio Pai o havia enviado antes. Os discípulos são enviados na força do Espírito Santo. Cristo os pneumatiza com seu sopro para uma missão de reconciliação: “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos”. É a missão dos apóstolos em perfeita continuidade com a missão do próprio Cristo. Aquele que veio para fazer do que era dividido uma unidade, Aquele que orou pedindo ao Pai que os homens fossem um, como Ele era um com seu pai, agora envia os apóstolos, seus embaixadores, a fim de que continuem seu ministério de reconciliação, para que não se perca nenhum daqueles que o Pai confiou ao Filho Unigênito.
Tomé não está com seus irmãos quando Cristo lhes aparece. Por isso, diante do testemunho dos outros discípulos ele exige uma experiência pessoal: “Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei”. O Senhor não lhe nega a exigência. Oito dias depois, reunidos de novo os discípulos em casa, agora juntamente com Tomé, o Senhor torna a se colocar no meio deles. Cristo comunica de novo a sua paz e convida Tomé a colocar o dedo nas suas chagas: “Põe o teu dedo aqui e olha minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”. Tomé prontamente reconhece o Senhor: “Meu Senhor e meu Deus.” Muitos de nós criticamos a atitude de Tomé. Mas, poderíamos chamar a incredulidade de Tomé de bendita incredulidade. Bendita incredulidade que nos valeu o título, dado pelo próprio Cristo, de bem-aventurados. Por causa da incredulidade de Tomé que só acreditou quanto tocou com suas mãos as chagas gloriosas do Senhor, nós nos tornamos bem-aventurados, bem-aventurados porque cremos sem ter visto. Sem ver o Senhor nós cremos n’Ele. E a fé no Ressuscitado nos conduz à vida. Não basta o Batismo como se esse fosse uma mágica. O batismo que nós recebemos é fruto dessa adesão pessoal a Cristo que nós fazemos mediante a fé. A fé que nos conduz à vida. A Palavra anunciada produz em nós a fé, que nos conduz à vida. É o que João nos anuncia no final desse Evangelho: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome”. A Palavra nos foi deixada por Cristo para ser anunciada e gerar em nós a fé, a fé que nos conduz à vida.
Diante desse mistério o que nos resta senão cantar com o salmista: “Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom; eterna é a sua misericórdia!”? O que nos resta senão proclamar as obras d’Aquele que nos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa? O que nos resta senão oferecer a nossa ação de graças por Aquele que nos deu como presente a fé que nos faz nascer de novo para uma esperança viva e uma herança incorruptível.
Ofereçamos hoje ao Senhor o nosso louvor Pascal. Ofereçamos ao Pai e ao seu Cristo, na força do Divino Paráclito que nos foi dado pelo Ressuscitado o nosso Aleluia Pascal, porque eterna é a sua misericórdia!