1ª Leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4
Sl 94
2ª Leitura: 2Tm 1,6-8.13-14
Evangelho: Lc 17,5-10
“Quarenta anos desgostou-me aquela raça e eu disse: ‘Eis um povo transviado, seu coração não conheceu os meus caminhos!’ E por isso lhes jurei na minha ira: ‘Não entrarão no meu repouso prometido!” Sl 94(95), 10-11
Estes são os últimos versículos do Salmo Responsorial que a liturgia de hoje nos propõe. Eles não serão foram entoados por nós, mas nos dão o sentido desse dia festivo que é o Domingo, “Dia do Senhor” e “Senhor dos Dias”.
Neste salmo, que é um salmo que chamamos de invitatório, porque é um convite ao louvor divino, o próprio Deus toma a palavra e se dirige ao povo de Israel, povo de cabeça dura, que experimentou durante quarenta anos o amor e a providência de Deus no deserto, mas que só sabia murmurar e maldizer o Deus de toda bênção.
Diante da falta de fé desse povo que “não conheceu os caminhos do Senhor”, o próprio Senhor dirige uma sentença: “Não entrarão no meu repouso prometido”. Esse “repouso prometido” era o descanso da vida errante do deserto que eles experimentariam ao entrar na terra da promessa. Todavia, esse “descanso de Deus”, esse “repouso de Deus e em Deus” tem também um sentido espiritual. Trata-se da nossa entrada na Jerusalém Celeste. Esse dia que nós aguardamos na fé é já experimentado a cada domingo quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia.
O Domingo é o “dia do repouso de Deus” e também o dia “do repouso em Deus”. Nós, como que antecipando nossa entrada naquela cidade santa que possui ruas de ouro e mar de cristal, adentramos no Templo de Deus, figura da Jerusalém futura, e aqui, enquanto celebramos os divinos mistérios, experimentamos, embora de maneira ainda imperfeita, o que será aquele nosso repouso definitivo em Deus, quando descansaremos de toda luta e estaremos em paz completa e definitiva.
Todavia, embora desejemos esse dia de repouso e creiamos que ele virá, estamos ainda no meio de nossas lutas e tantas vezes fazemos nossa a voz do profeta que hoje clama a Deus: “Até quando, Adonai, pedirei socorro e não ouvirás, gritarei a ti: ‘Violência!’ e não salvarás” (cf. Hab 1,2) Diante das nossas lutas, externas e também internas, pedimos que Deus nos dê uma palavra, que Ele rompa o seu silêncio e nos dê uma palavra de vida.
Deus hoje nos responde, como respondeu a Habacuc, porque a Escritura nos diz (cf. Hab 2,2ss): “Então Adonai respondeu-me, dizendo: ‘Escreve a visão, grava-a claramente sobre tábuas, para que se possa ler facilmente. Porque é ainda uma visão para um tempo determinado: ela aspira por seu termo e não engana; se ela tarda, espera-a, porque certamente virá, não falhará! Eis que sucumbe aquele cuja alma não é reta, mas o justo viverá por sua fidelidade”. Deus hoje escuta o nosso clamor e nos dá uma palavra e a Palavra que Deus nos dá é um convite à fé. O Senhor nos apresenta duas posturas, dois modelos de homem: o arrogante e presunçoso, que confia em si mesmo, o que não tem uma alma reta e que, por isso, perecerá; de outro lado o Senhor nos apresenta o homem humilde, justo, que confia no Senhor, que tem fé e que, sustentado pela fé que possui, viverá.
Hoje, somos convidados a uma atitude de fé, a pedirmos a Deus que possamos ser esses justos que caminham na fé. Habacuc está contrapondo aqui a atitude dos povos vizinhos à atitude de Israel. O povo de Israel se encontra no meio de uma luta entre a decadente Assíria e a florescente Babilônia. Israel não deve imitar a atitude arrogante dessas potências que confiam somente nas suas próprias forças, mas deve ser humilde e confiar na força que vem do Senhor. Israel não deve se antecipar numa atitude precipitada, mas deve esperar que o socorro divino venha, e este certamente virá, uma vez que foi prometido pela palavra de Deus enviada ao profeta.
Essa atitude de fé, deve ser a atitude do cristão no meio das suas lutas. Não podemos confiar somente nas nossas próprias forças. Isso não significa que não devemos fazer a nossa parte. Sim devemos fazê-la, mas devemos ter em mente que a última palavra é sempre de Deus. Essa é a atitude do homem de fé.
Talvez estejamos nos perguntando o que significa ter fé. Muitas vezes não sabemos, não temos a mínima noção do que seja a fé. A fé não é simplesmente um sentimento. A fé não é simplesmente a prática exterior de uma religião. A fé é claramente definida para nós em Hb 11,1: “A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se vêem.” Duas coisas nos diz esse versículo a respeito da fé: ela é posse antecipada do que se espera; é a certeza a respeito daquilo o que não se vê.
Os antigos túmulos cristãos traziam em si, muitas vezes, a imagem de um farol com a seguinte inscrição grega: “AORATA” (lê-se: aoratá). Essa palavra grega está no plural e significa: “As coisas invisíveis.” A fé é esse farol que nos faz contemplar o invisível. No meio das nossas lutas, externas e internas, não conseguimos ver uma vitória definitiva. Sentimos que vamos vencendo umas batalhas, perdemos outras, mas que a guerra nunca termina. Nesse momento devemos nos lembrar da atitude do homem de fé. O homem de fé vê o invisível. Sabe que Cristo venceu o pecado e a morte e ainda que o pecado e a morte pareçam reinar, Cristo já venceu.
A fé nos faz, também, possuir, diz o versículo, aquilo o que esperamos. E o que esperamos? O nosso advento, a nossa espera, não é somente de bens deste mundo. É fato que desejamos também uma vida tranquila, que queremos saúde, paz, prosperidade, todavia o cristão espera algo que está muito além deste mundo e é isto que nos move. O que nos move é a alegria antecipada que a fé nos dá de sabermos que é certo que receberemos aquilo o que esperamos e o que esperamos é o Reino de Deus. O que esperamos é “entrar no seu repouso”.
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações”, diz o mesmo salmo 94 que cantamos como resposta à primeira leitura que ouvimos. Hoje, nós ouvimos a sua voz, não deixemos que nossos corações se endureçam, mas permitamos que a Palavra penetre em nós e dê frutos.
O Evangelho, coração dessa liturgia da Palavra, é a realização plena da primeira leitura que ouvimos. Os apóstolos pedem a Cristo: “Aumenta a nossa fé!” A moldura desse evangelho que ouvimos é a quarta parte do evangelho de Lucas: a subida para Jerusalém. Jesus se dirige para a consumação da sua vida e nesse caminho ele vai orientando os seus discípulos e os apóstolos. Depois de dar alguns ensinamentos aos discípulos Jesus é interpelado de maneira particular pelos apóstolos que fazem a Ele esse pedido: “Aumenta a nossa fé!” Esse é talvez o nosso pedido hoje nessa liturgia: “Aumenta a nossa fé!” Jesus responde dizendo: “Se tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.”
“Se tivésseis fé!” Porque o Senhor se dirige assim aos apóstolos? Porque Jesus quer mostrar-lhes que não se trata de ter uma fé pequena ou grande. Não se trata de um aumento quantitativo da fé, mas sim de sua purificação. Jesus que mostrar aos apóstolos que eles devem passar do seu nível de fé, da mera crença, para um novo nível de fé, tão poderoso que é capaz de realizar prodígios fantásticos, como Jesus descreve plasticamente através da imagem da amoreira que é arrancada da terra e transplantada no mar.
A fé é capaz de realizar prodígios maravilhosos. E podemos pensar não tanto nos grandes milagres que foram e são realizados ao longo dos séculos pelo poder da fé. Esses são grandes sinais realizados para suscitar a fé dos que antes não acreditavam. Penso que a fé realiza sinais prodigiosos porque ela nos faz ver o invisível. É um sinal prodigioso a vida cristã. Vivemos no meio de um mundo cercado de imediatismo e que valoriza somente a aparência das coisas. Nesse mundo de aparências é um grande prodígio que vivamos como quem vê através das realidades palpáveis para chegar ao núcleo das coisas.
É importante, também, entendermos que a fé é um dom que recebemos. Paulo exorta Timóteo, a guardar o “precioso depósito”, expressão que indica o conteúdo da fé. Timóteo deve ser o guardião da fé que recebeu de outrem, porque a fé, com todo o seu conteúdo, não é criada por nós, mas ela é recebida e transmitida. Nós somos chamados a guardar a fé e a transmitirmos a outros a mesma fé, com todo o seu conteúdo doutrinário, em sua integridade, sem acrescentar nada de nosso, porque já estaríamos deturpando, assim, a própria fé.
Esse é o nosso trabalho de servos: guardar e transmitir a fé. É interessante também a segunda imagem de Lucas nesta perícope que hoje ouvimos. Depois de responder ao pedido dos apóstolos, Jesus lhes dá um ensinamento sobre o papel do servo. Talvez nos pareça estranho que Deus se manifeste no papel desse patrão dominador e exigente, que não respeita o cansaço do servo e que o coloca para trabalhar cada vez mais. Jesus se utiliza aqui de uma imagem conhecida no seu tempo, para transmitir um ensinamento novo. No tempo de Jesus era comum que o servo fosse considerado como propriedade do patrão, que tinha sobre o servo plenos direitos, podendo exigir assim que ele trabalhasse sem limite de horários, devendo servir ao patrão em todo o tempo. Mas, não é na figura do patrão que Jesus quer se fixar. Até mesmo porque conhecendo a Escritura vemos que Jesus se revela de maneira bem diferente.
Por exemplo em Lc 12,37, quando Jesus fala a respeito do patrão que voltará e que, ao encontrar os servos vigilantes, vai cingir os rins e vai servi-los; também poderíamos ver Lc 22,27, quando diante da discussão sobre qual dos discípulos seria maior, Jesus encerra a perícope dizendo que o maior é aquele que serve, uma vez que ele mesmo está no meio dos seus apóstolos e discípulos como aquele que serve; e ainda Jo 13,1-16, onde Jesus não somente fala que é servidor, mas realiza um gesto profundamente simbólico ao cingir a cintura e lavar os pés dos apóstolos, o que era uma função servil.
A imagem à qual nos devemos prender aqui é a imagem do servo que deve estar sempre pronto a servir ao seu Senhor, sabendo que esta é a sua condição, ou seja, que ele está ali justamente para isso. Diante de Deus nós devemos nos colocar como servos que querem verdadeiramente servi-lo de todo coração, e estamos aqui justamente para isso. Ninguém pode se vangloriar do seu serviço, porque nós só nos realizamos à medida em que o servimos. O serviço do Senhor nos liberta, dá sentido à nossa vida. Por isso, só podemos ser plenamente humanos servindo-o, e isso não é um favor que fazemos a Deus, mas é a realização da nossa própria vida, por isso devemos considerar-nos servos inúteis, que “fizeram o que deveriam fazer, e nada mais”.
Somente o homem de fé pode agir assim, porque sabe que a recompensa pelo seu serviço não está nesse mundo, mas “nas coisas invisíveis”. Por isso peçamos hoje ao Espírito que venha sobre nós, para que recebamos o dom da verdadeira fé. Que possamos ver o invisível e nos alegrar com a posse antecipada daquilo o que esperamos, a fim de que caminhando entre as lutas e violências dessa vida, possamos nos dirigir todos juntos, ao “repouso prometido”.