Am 6,1a.4-7
Sl 145 (146)
1Tm 6,11-16
Lc 16,19-31
Na liturgia da Palavra deste domingo, a primeira e o evangelho tomam, novamente, no tema do bom e do mau uso do dinheiro.
A primeira leitura nos traz um trecho do profeta Amós. O profeta Amós é originário, do Sul, do Reino de Judá, mas é enviado por Deus para profetizar no Reino do Norte, Israel. Ele está no século VIII a.C. e, por este período, o Reino do Norte gozava de uma grande prosperidade material. Além de uma terra fértil, o Reino do Norte possuía também boas rotas de comunicação com os povos circunvizinhos e com o mar, o que facilitava o comércio, tornando a região sempre mais próspera.
A crítica do profeta deixa entrever essa grande prosperidade material quando ele fala dos que “dormem em camas de marfim” (cf. 6,4) e dos que bebem “crateras de vinho” (cf. 6,6). Não se tratam de simples “taças” como traduz o lecionário. O autor sagrado utiliza aqui um termo hebraico, que aparece também em Ex 27,3, para designar as bacias utilizadas no culto para a aspersão. Em Ex 27,3 tais “bacias para aspersão” aparecem como sendo feitas de bronze, mas em outros textos, como em Nm 4,14; 7,13 etc., elas aparecem como sendo feitas de metais mais nobres, como a prata. Seja como for, o profeta quer falar do grande luxo das classes dirigentes, aqueles que “se sentem seguros nas montanhas de Samaria”, e aqueles que “estão tranquilos em Sião”[1], em flagrante contraste com a pobreza na qual vive o resto da população.
Basta lermos alguns trechos de Amós para vermos a situação de extrema pobreza na qual vive a população, apesar do luxo das classes dirigentes:
“Assim falou DEUS: Pelos três crimes de Israel,
Pelos quatro, não o revogarei!
Porque vendem o justo por prata
E o indigente por um par de sandálias.
Eles esmagam sobre o pó a cabeça dos fracos
E tornam torto o caminho dos pobres;
Um homem e seu pai vão à mesma jovem
Para profanar o meu santo Nome.” (cf. Am 2,6-7)
Poderíamos ainda citar outros textos, como Am 3,9-10 ou, ainda, Am 4,1. Os ricos “oprimem”, “esmagam”, “tornam torto o caminho” etc. São acusações fortes, contra um povo que se diz o povo de Deus, que pratica cultos e vai ao Templo, mas cuja injustiça é patente diante de Deus e dos homens. Deus não pode tolerar tal comportamento.
A falsa segurança religiosa deles será abalada, porque o ataque do inimigo cairá sobre eles. O trecho deste domingo se encerra com a sentença divina: “Por isso, eles serão deportados na frente dos exilados, e terminará a orgia dos que estão estendidos.”[2]
Como resposta a esta leitura, a liturgia nos apresenta o Salmo 145 (146). Somente os vv. 7-10 são proclamados na liturgia. A primeira parte do Salmo nos mostra a loucura que é colocar no homem a esperança. A própria existência humana é caduca. O homem volta para o pó de onde veio. Só no Eterno podemos depositar a nossa confiança. Ele é quem faz, de fato, o bem, especialmente aos mais desvalidos. É o que vai proclamar o Salmo nos vv. 7-9, descrevendo sete ações de Deus em favor dos mais desfavorecidos.
O Salmo termina proclamando o reinado eterno de Deus: “Deus reina para sempre, teu Deus, ó Sião, de geração em geração!”
Imediatamente nosso olhar se lança para o evangelho, o coração desta liturgia da Palavra. O Evangelho deste domingo é uma continuação daquele que ouvimos no domingo anterior. O cap. 16 de Lucas vem emoldurado por suas parábolas: a do administrador infiel, nos vv. 1-8, e a do rico e do pobre “Lázaro” nos vv. 19-31.
Já o início da parábola contrapõe duas figuras: de um lado, um rico esbanjador, muito semelhante àqueles descritos na primeira leitura; de outro, um pobre, cuja única riqueza é o fato de possui um nome, Lázaro, que alguns autores acreditam derivar da raíz hebraica que significa “ajudar, apoiar, auxiliar” e, significaria, “Deus ajuda”.
De fato, a única ajuda do pobre Lázaro vem de Deus. Os vv. 19-21 não somente descrevem de forma paradoxal essas duas figuras, como mostram, particularmente o v. 21, a imensa indigência na qual Lázaro vivia: ele queria somente as sobras, mas parece, embora o texto não o diga, que nem isso lhe davam.
Os vv. 22-31 vão apresentar a mudança de sortes no além, e as tentativas do rico de fazer com que seus familiares pudessem ser avisados sobre o mal que estava também para lhes acontecer.
Essa segunda parte da parábola nos faz perceber que o tempo de fazer o bem é este tempo presente. É agora que decidimos o que fazer com os bens que possuímos: ou vivemos a partilha, e haveremos de colher na outra vida o fruto do bem feito aos irmãos; ou fechamo-nos no egoísmo, e haveremos de ficar, na outra vida, separados para sempre da felicidade eterna pelo abismo intransponível criado pela nossa própria maldade. Não foi Deus quem quis um abismo entre o rico e o Lázaro. Este já foi cavado pelo próprio rico, quando nesta vida não reconheceu naquele pobre um irmão a quem estender a sua mão.
Os vv. 29-31 merecem ser destacados. Diante da súplica do rico que pede que alguém alerte seus familiares, Abraão lhe responde que eles têm Moisés e os Profetas. Ou seja, ninguém está desavisado. A palavra de Deus é um constante alerta para sairmos do egoísmo e vivermos a lógica da partilha fraterna. Ninguém pode se justificar dizendo que não sabe. Mais interessante ainda, é o que Abraão vai responder no v. 31 diante da insistência do rico. Este acha que, se um dos mortos for até seus parentes, eles irão crer. Abraão responde que, se eles não ouvem Moisés e os Profetas, mesmo que alguém “ressuscite dos mortos”, eles não irão acreditar. De fato, é assim. Nosso Senhor, Aquele que nos ensinou de modo sublime o amor aos irmãos, ressuscitou dos mortos. Contudo, quantos são ainda insensíveis, mesmo diante do grande sinal que foi a sua Ressurreição?
Poderíamos terminar nossa reflexão com a segunda leitura. Paulo recomenda a Timóteo que este se afaste das “coisas perversas” e procure, entre outras coisas, a “justiça”. Que o Senhor nos ajude a vivermos a justiça, como vivamente Deus nos pede na primeira leitura; que ainda o Senhor nos ajude a viver a justiça em âmbito pessoal, como nos indica o Evangelho, praticando o amor ao próximo e a partilha, pois isso é “bom e justo” aos olhos de Deus.
[1] A referência a Sião pode ser uma releitura tardia, uma vez que o profeta se dirige ao Reino do Norte e não ao Reino do Sul, onde está o monte Sião, sobre o qual foi edificada Jerusalém.
[2] Subentenda-se “os que estão deitados sobre os seus divãs”, dos quais fala o profeta em 6,4.