Is 35,4-7a
Sl 145
Tg 2,1-5
Mc 7,31-37
“O Senhor abre os olhos aos cegos” (Sl 145,8)
O Pão da Palavra e o Pão Eucarístico nos guardam para a vida que virá! É isso o que nos diz a liturgia de hoje na oração pós-comunhão: “Ó Deus, que nutris e fortificais vossos fiéis com o alimento da vossa palavra e do vosso pão, concedei-nos, por estes dons do vosso Filho, viver com ele para sempre.”
O Cristo nos alimenta nestas duas mesas. É necessário recolher, com cuidado, cada fragmento do Corpo de Cristo, que nestas duas mesas se dá a nós como um alimento salutar que nos nutre e nos guarda para a vida.
O Evangelho hoje nos apresenta o Cristo que circula no meio das cidades pagãs. Ele, o Cristo, não segue o itinerário mais óbvio, mas o itinerário teologicamente mais adequado. Ele literalmente circula no meio das cidades pagãs realizando sinais que visam chamar os homens à conversão.
Trouxeram à Jesus um surdo, que falava com dificuldade, para que Ele lhe impusesse as mãos. Esse gesto de impor as mãos possui muitos significados na Escritura: transmissão de um carisma (1Tm 4,14); transmissão do Espírito; cura etc. Aqui trazem a Jesus um surdo para que Ele o cure.
Esse homem, porque não ouve, também fala com dificuldade, não consegue se expressar. Jesus leva o surdo-gago “a sós” para longe da multidão e realiza uma série de gestos que o colocam, ainda que através de uma linguagem simbólica, em diálogo com o surdo-gago. Jesus coloca o dedo em seus ouvidos, com saliva toca sua língua e elevando os olhos aos céus ordena: “Effathá!” O dedo é sinal de poder. Em Ex 8,15 se reconhece que as pragas são enviadas pelo dedo de Deus! A saliva possuía, segundo a crença dos antigos, um poder medicinal. Ao elevar os olhos ao céu, Jesus recorda que é de lá que, de acordo com o salmista, vem o auxílio: “Levanto os olhos para os montes: de onde me virá o auxílio?” (Sl 121,1) “Levanto os olhos a ti, que habitas no céu!” (Sl 123,1) Jesus não está nem realizando um rito mágico, como falsamente interpretam alguns; nem tampouco usando um ritual de curandeirismo do seu tempo.
Jesus que poderia curar apenas pelo poder de sua palavra, como já demonstrara no caso da filha da siro-fenícia, quer realizar esta cura utilizando-se de uma moldura que recorre a um rico simbolismo fundado na cultura e na religiosidade do seu povo.
Imediatamente, diz a Palavra, os ouvidos do surdo se abriram e sua língua se “soltou” e ele passou a falar corretamente.
Jesus, todavia, como já é comum no Evangelho de Marcos, proíbe que seus milagres sejam divulgados, porque o que importa é o sentido do milagre e não o milagre em si. Estupefata, a multidão comenta: “Ele faz tudo bem!” Tal exclamação nos remete ao Gênesis, quando o autor bíblico diz: “E Deus viu que tudo era bom!” A exemplo do Pai, o Cristo faz bem todas as coisas. E a multidão ainda aclama nos moldes da primeira leitura que ouvimos: “Faz ouvir os surdos e falar os mudos.”
O gesto de Jesus realiza aquilo o que Isaías profetizou na primeira leitura: “Se abrirão os olhos do cego e se descerrarão os ouvidos dos mudos” (cf. Is 35,4).
A liturgia da Palavra nos mostra, assim, a maravilhosa unidade da história da salvação: Isaías profetizou; o Cristo realizou e nós colhemos os frutos do que Cristo realizou. Isaías profetizou que os ouvidos do surdo se abririam; o Cristo curou o surdo-gago inaugurando, assim, os tempos messiânicos; hoje, também o Cristo pronuncia solenemente sobre cada assembleia eucarística um novo “Effathá!”, a fim de que os nossos ouvidos possam “ouvir” a sua Palavra.
O Evangelho que hoje ouvimos, foi logo assumido nas liturgias batismais primitivas a fim de que os neófitos tivessem os ouvidos abertos para escutar a Palavra e a língua livre para proclamá-la retamente. Também nós somos uma assembleia batismal. O Mistério da Assembleia reside no fato de sermos aqueles que foram renascidos em Cristo, ressuscitados com Ele, tocados em nossos ouvidos e lábios para ouvirmos e proclamarmos a sua Palavra. Essa Palavra já aconteceu em nós, mas precisa ser assumida e assimilada, por isso ela volta a cada ciclo B, neste 23º domingo, para nos recordarmos daquilo o que foi feito em nós e cantarmos com o salmista: “Bendize, ó minha alma ao Senhor. Bendirei ao Senhor toda a vida! O Senhor abre os olhos aos cegos, o Senhor faz erguer-se o caído!”
O Senhor hoje nos toma em suas mãos e nos leva a sós, a um lugar à parte, onde ele cura a nossa chaga mais profunda: a surdez espiritual. Quando ouvimos a Palavra e a nossa boca a proclama, tudo em nós se torna luz e compreendemos os milagres que estão ao nosso lado e que, de tão óbvios, se tornam imperceptíveis. Um desses milagres é a assembleia, onde não pode haver acepção de pessoas. Todos nela têm o mesmo valor: ricos e pobres; ministros e povo; todos possuem a mesma dignidade. Não cabe, naqueles que entendem o milagre da assembleia, a acepção de pessoas. O valor da assembleia não está na consideração de cada membro individualmente, com seus evidentes pecados. O seu valor reside no fato dela ser sacramento de Cristo, seu Corpo Místico. Quando contemplamos essa realidade percebemos que o outro ao nosso lado, seja ele quem for, é um membro desse corpo, e deve ser reverenciado pelo que ele significa. É disto que fala Tiago, na segunda leitura, quando exorta seus irmãos a não fazerem acepção de pessoas nas assembleias cristãs.
Abramos o nosso coração ao Cristo e deixemos que Ele nos toque e nos liberte de nossa surdez espiritual, a exemplo do que fez no Evangelho com o surdo, que falava com dificuldade. Ouvindo de modo pleno, falaremos sem dificuldade, anunciaremos com a palavra e a vida que Jesus é o Cristo.