Sb 9,13-18
Sl 89
Fm 9b-10.12-17
Lc 14,25-33
Renunciar a si mesmo, para seguir o Cristo
Em cada domingo recebemos a Liturgia da Palavra como um dom do alto para nós. A Palavra de Deus, tão louvada no Salmo 118 (119), que é ali chamada de “luz para os nossos passos” (cf. v. 105), é proclamada em nossas assembleias e nós a acolhemos como a doce voz do Cristo que nos chama, que nos convida à comunhão com Ele.
Permeados de muitas perguntas, a primeira leitura e o evangelho deste domingo nos convidam a um nível profundo de reflexão. A primeira leitura nos coloca diante da nossa incapacidade de conhecermos, sozinhos, o projeto salvífico de Deus para nós. A Igreja afirma que é possível chegar ao conhecimento de Deus pela luz natural da razão, mas o seu projeto salvador, esse nos é revelado do alto. Em Sb 9,16 o autor sagrado apresenta essa questão: Mal podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus?
Existe, contudo, uma forma de conhecermos o projeto salvífico de Deus. Ele, o Pai do céu, pode nos revelar esse projeto enviando do alto a sua Sabedoria, dando-nos o seu Santo Espírito. No contexto do Antigo Testamento, a Sabedoria e o Santo Espírito são compreendidos como potências de Deus. À luz, contudo, do Novo Testamento, onde encontramos a plenitude da Revelação, e à luz do qual relemos a história salvífica contida no Antigo Testamento, sabemos que a Sabedoria que vem do alto é o próprio Cristo, Verbo feito carne, que nos veio revelar da parte do Pai tudo o que é necessário para a nossa salvação. O Santo Espírito, por sua vez, é a terceira pessoa da Trindade, derramado sobre a Igreja em Pentecostes, que vem continuamente sobre nós nos “ensinar” e “recordar” todas as coisas (cf. Jo 14,26). Agora podemos conhecer o “desígnio do Senhor”, porque este nos foi revelado em Cristo e o Espírito Santo nos ajuda a compreender de modo cada vez mais pleno o conteúdo dessa revelação.
A Sabedoria do alto, o Cristo, cada domingo, abre sua boca e nos anuncia o Evangelho. Assim, paulatinamente, vai se abrindo para nós o livro outrora selado (cf. Ap 5,1). Vamos conhecendo a vontade do Pai a nosso respeito.
O trecho do evangelho que ouvimos hoje é emoldurado pelo chamado a renunciarmos tudo para sermos discípulos do Cristo. A cena se abre com “grandes multidões” que seguem Jesus. O Senhor não quer que eles sejam meros andarilhos que vão atrás de alguém que diz belas palavras. Ele está indo para Jerusalém e, dentro de pouco tempo, ele não estará mais fisicamente presente no meio dos seus. Por isso, ele aproveita o caminho para fazer desses “caminhantes” verdadeiros “discípulos”.
Duas coisas são exigidas dos discípulos: o desapego dos laços familiares e até da sua própria vida e a capacidade de abraçar a cruz. Lucas utiliza um verbo de difícil compreensão: odiar. Em geral, nos evangelhos, tal verbo se refere ao “ódio” que os discípulos receberão da parte do mundo, que muitas vezes não compreenderá sua mensagem (cf. Mt 10,22; Jo 15,18). Nos perguntamos o que significaria, nos lábios de Jesus, odiar pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e, por fim, a própria vida.
O texto paralelo, de Mt 10,37, apresenta um texto mais brando: “Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E aquele que ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim”. O texto de Mt 10,37 não somente é mais brando que o de Lucas, mas ajuda a entender o que Lucas quer dizer com “odiar”. Não se trata de um sentimento ruim contra os parentes ou contra a própria vida, mas trata-se de um desapego radical e total, que não permite que os laços familiares sejam um impedimento para se seguir o Cristo. Pensemos em quantos aceitam a verdade do evangelho, mas podem não aderir a ele com medo de desagradar os familiares que possuem outras crenças. Pensemos em quantos gostariam de seguir de modo mais radical o Cristo, mas não querem abrir mão do conforto do lar, ou de tudo aquilo o que lhe traz segurança. Cristo exige de quem pretende ser seu discípulo uma decisão radical. Odiar, aqui, é sinônimo de “deixar”, como se pode compreender à luz do próprio evangelho de Lucas (cf. Lc 18,29-30).
Não se trata, contudo, de uma simples renúncia. Somos chamados a renunciar tudo, para seguir o Cristo. São Bento, no capítulo 4 da sua Regra, enumera a renúncia a si mesmo para seguir o Cristo como um dos instrumentos das boas obras. A “renúncia” é um “instrumento”, ou seja, é um “caminho”, uma “disposição”, sem a qual é impossível seguir o Senhor. “Tomar a cruz” e “caminhar atrás” d’Ele nada mais é do que fazer o caminho do discípulo. O discípulo caminha atrás do Mestre, participa da vida e do destino do Mestre, aprende com o que o Mestre diz e com o que o Mestre faz.
O Senhor Jesus, contudo, não quer discípulos que pensam ser fácil o caminho. Por isso, depois desse primeiro anúncio, ele se serve de duas imagens para demonstrar que cada um deve ponderar bem antes de se decidir ser discípulo. A primeira imagem é a de um camponês, que precisa construir uma torre. Antes de começar seu empreendimento, ele deve avaliar suas condições, saber se tem dinheiro para levar a obra até o fim. Do contrário, caçoarão dele. A segunda imagem é tirada do mundo da guerra. Um rei sábio, antes de sair para guerrear, avalia primeiro se tem realmente condições de empreender a batalha. Do contrário, envia uma delegação em busca de paz.
Tal ponderação diante da escolha por seguir ou não o caminho da fé aparece não somente aqui, no Novo Testamento, mas também na experiência do povo de Deus no Antigo Testamento. Josué (cf. Js 24), antes de morrer, reuniu o povo em Siquém, e pediu que eles ponderassem bem antes de escolher servir a Deus. São Bento, na sua regra monástica, no capítulo 58, que trata do modo de se proceder à recepção dos irmãos, afirma que ninguém deve ser muito facilmente admitido ao Mosteiro. Essa espera deve durar ao menos um ano, e o candidato deve ser conscientizado do caminho que está para escolher.
Essa advertência que encontramos no AT, em Cristo e, mais tarde, na vida da Igreja, como na citada Regra de São Bento da qual falamos acima, tem em vista fazer com que cada um, utilizando bem sua liberdade, possa discernir se quer ou não ser discípulo de Cristo. Quem aceita esse caminho, deve saber que não é um caminho fácil, é um caminho que envolve renúncia a “tudo o que se tem” como é afirmado no final do Evangelho, mas é o caminho que conduz à vida e à felicidade que cada homem e mulher deseja no mais íntimo de si. Bovon, um importante comentador do evangelho de Lucas, afirma que a “renúncia” é como o Sábado Santo que precede ao Domingo da Páscoa.[1] Em outras palavras, a renúncia é o sacrifício necessário, para que possamos chegar à liberdade e à alegria que desejamos.
[1] Cf. François Bovon, El Evangelio según San Lucas, v. 1, p. 645.