Sb 9, 13-18 (gr. 13-18b)
Sl 89 (90)
Fm 9b-10.12-17
Lc 14,25-33
A oração coleta deste 23º Domingo do Tempo Comum é como um clamor de toda a assembleia que, pelos lábios do sacerdote, sobe até Deus: “concedei aos que crêem no Cristo a verdadeira liberdade e a herança eterna”. Liberdade verdadeira… e uma herança eterna… Um duplo pedido, mas formado por duas realidades que se reclamam mutuamente. Receber a herança eterna já conquistada para nós pelo Cristo em seu mistério pascal deve ser um ato da nossa liberdade. Deus não nos força. Ele nos oferece gratuitamente a salvação e espera que nós, de modo muito livre, possamos a esta salvação aderir.
Diante desse duplo pedido poderíamos nos perguntar em que consiste essa “liberdade”, aqui adjetivada como “verdadeira”. A “liberdade verdadeira” consiste, sem dúvida alguma, em seguir o Cristo. A criatura é tanto mais livre, quanto mais realiza aquilo para o qual ela foi feita. Deus nos fez para Ele, para estarmos em comunhão com Ele. Embora Ele nos tenha dado uma liberdade que chamamos de livre-arbítrio, que supõe até mesmo a renúncia à essa comunhão, a “liberdade verdadeira” consiste, por sua vez, em seguirmos a voz do Cristo que nos faz entrar em comunhão de vida cada vez maior com o Pai, sendo aquilo para o qual fomos feitos.
Nesse caminho de busca de uma “liberdade verdadeira” tem papel preponderante a Palavra de Deus. Deus mesmo, através de sua Palavra, nos educa e nos forma, nos mostra o caminho pelo qual devemos seguir a fim de alcançarmos o grande prêmio da vida eterna.
O evangelho deste domingo é um grande chamado à “renúncia”. Não se trata, todavia, de uma renúncia vazia, mas sim de renunciar a tudo em vista do único necessário: o próprio Cristo.
Os vv. 26 e 33 servem de moldura para todo o evangelho, marcados pelo verbo “desapegar” no v. 26 e “renunciar” no v. 33.
No v. 26 o verbo que se traduz como “desapegar” é o verbo grego miso, que significa, literalmente, “odiar”. No paralelo de Mt 10,37 esse dito de Jesus é amenizado, e Mateus fala de “amar pai ou mãe acima (hyper) de Jesus”. Aqui Lucas trabalha com uma imagem forte, amenizada na tradução de nosso lecionário. Lucas falar de “odiar pai e mãe, mulher e filhos”. É claro que não se trata de ódio propriamente dito, pois Jesus não iria contrariar-se assim mesmo, uma vez que o seu ensinamento está repleto da lei do duplo amor a Deus e ao próximo. Lucas quer chocar seus ouvintes mostrando que é necessário uma renúncia radical para seguir o Cristo. Não se pode colocar à frente dele, de Jesus, o amor à família ou ao bem-estar. É necessário “desapegar-se de tudo” a fim de seguir unicamente o Cristo.
Junto com esse aspecto de renúncia está o tema da cruz. No v. 27 Jesus afirma “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim não pode ser meu discípulo”. Só pode ser discípulo de Cristo quem preenche estas exigências: desapego de tudo, até mesmo da própria vida; e abertura à cruz. Nisso o discípulo se identifica com o próprio Cristo, que também deixando tudo saiu a anunciar a Palavra e, desapegando-se da sua vida por amor de nós, entregou-se livremente à cruz para nossa salvação.
Antes do v. 33, os vv. 28-32 nos apresentam duas parábolas de Jesus. A primeira delas (vv. 28-30) fala da construção de uma torre. É necessário que o construtor se sente e pondere se tem com o que terminar a sua obra, a fim de não ser envergonhado ao deixar sua torre inacabada. A segunda parábola (vv. 31-32) nos fala de um rei. Antes de sair para guerrear ele deve se sentar e ponderar para ver se terá como vencer a batalha. Caso perceba que não há chance de vitória, será melhor negociar as condições de paz.
Com estas duas parábolas Jesus quer fazer com que seus ouvintes possam refletir se querem mesmo ser seus discípulos. Jesus não deseja desanimar ninguém, mas também não quer discípulos que o seguem enganados, sem saber o que lhes espera. É grande a tarefa de quem se faz discípulo de Cristo, por isso é necessário refletir, a fim de que se entre nesse caminho consciente das suas exigências. É claro que no caminho sempre se precisará contar com a ajuda de Deus. Ninguém pode ser discípulo sozinho. O próprio Cristo alertará aos discípulos que eles devem permanecer em Jerusalém e aguardar a vinda do Paráclito antes de partir para sua missão. Contudo, é necessário ter bem presente, desde o início, as exigências do caminho, a fim de que cada um, dentro das suas possibilidades, se prepare bem para empreendê-lo.
O texto termina com o v. 33 que está diretamente ligado às parábolas anteriores pela expressão “do mesmo modo”. Assim como o construtor tem que pesar suas condições de construir a torre e o rei deve ponderar sobre sua capacidade bélica, o que pretende ser discípulo de Jesus deve estar ciente de que será necessário “renunciar” a tudo o que se tem para empreender esse caminho.
O verbo utilizado por Lucas é o verbo “apotássomai”. Em sentido próprio esse verbo significa “desperdir-se”, “dar adeus”; em sentido figurado significa “renunciar” a alguma coisa. O discípulo de Jesus deverá “dar adeus”, “despedir-se”, “renunciar” a tudo para segui-lo. Essa exigência é dura, mas sem cumpri-la ninguém pode ser realmente discípulo. O discípulo que não assume a necessidade da renúncia, em algum momento não se submeterá ao Mestre, ficando preso aos seus laços terrenos, e isso comprometerá a sua vocação de discípulo, que deve ser a de alguém que é livre para seguir o Mestre onde quer que Ele vá.
Todavia, existe um aspecto espiritual interessantíssimo que se deve considerar. O discípulo deixa tudo para seguir o Mestre, afasta-se fisicamente muitas vezes das pessoas mais queridas. Contudo, o Mestre ensina ao discípulo uma nova forma de se aproximar daquilo o que Ele deixou, principalmente das pessoas queridas. Quantos há que partem pelo mundo em missão e não deixam de amar, mas ao contrário, amam até mais aos pais e irmãos, aos amigos e parentes, do que aqueles que estão ao lado dessas pessoas dia a dia? Isso acontece porque o Senhor que nos chama a renunciar, nos ensina também a amar, a amar de uma forma mais profunda e verdadeira.
É Cristo, a Sabedoria do Pai quem nos ensina hoje na Palavra. Como diz a primeira leitura “pela Sabedoria” fomos salvos. O Cristo, Sabedoria Eterna que fez carne e veio habitar no meio de nós, nos salvou e nos chama a entrar em comunhão com Ele, renunciando a tudo a fim de sermos seus discípulos, fazendo d’Ele e somente d’Ele, o nosso “refúgio” como afirma o Salmo Responsorial dessa liturgia.
Lançando um olhar para a segunda leitura nos colocamos diante desse texto de Paulo a Filemon. Na prisão Paulo se encontra com um escravo fugitivo, Onésimo, a quem ele evangeliza, a quem ele “gera” para o Cristo. Sem entrar em pormenores e discussões sobre a validade ou não da escravidão naquele contexto histórico, Paulo coloca o seu discurso num nível muito mais elevado. Onésimo volta para Filemon e é como se fosse “o próprio coração do apóstolo” (v.12). Paulo gostaria de tê-lo consigo, mas não quer forçar a bondade de Filemon, e por isso deixa Onésimo partir. Paulo convida, por fim, Filemon, a receber Onésimo como um “irmão no Senhor”. É a partir de Cristo que as relações entre Filemon e Onésimo devem ser transformadas. Filemon deve reconhecer a imensa dignidade que Onésimo recebeu ao se tornar membro do corpo de Cristo, por isso deve recebê-lo como um irmão no Senhor.
Nós avançamos na história e hoje somos capazes de perceber que todo tipo de escravidão é uma abominação diante de Deus, porque Deus criou o homem para a liberdade. Contudo, mas que isso, Deus criou o homem para a “comunhão” com Ele e nisso consiste de modo ainda mais profundo a dignidade de cada ser humano. Peçamos que o Senhor nos ajude a reconhecermos a dignidade de cada pessoa humana, feita à imagem e semelhança do próprio Cristo e a reconhecermos ainda, de modo talvez mais profundo, a imensa dignidade daqueles que se tornaram novas criaturas pelo Batismo, configurando-se de modo perfeito a Cristo Senhor.