1ª Leitura: Jr 20,7-9
Sl 62
2ª Leitura: Rm 12,1-2
Evangelho: Mt 16,21-27
A afirmação inicial do profeta, na primeira leitura, chama nossa atenção: “Seduziste-me, Senhor, e deixei-me seduzir” (Jr 20,7). O profeta que recebeu de Deus a ordem de não tomar esposa, e de não gerar filhos e filhas, a fim de que sua vida fosse um sinal para o povo de Israel (cf. Jr 16,2-3) é agora “seduzido” pelo próprio Deus. O verbo “seduzir” faz parte do vocabulário matrimonial e aparece em Os 2,16, que é o primeiro a utilizar tal linguagem para falar da relação entre Deus e seu povo.
Deus seduz o profeta e este se deixa seduzir! Jeremias se lamenta, porque a palavra que ele deve anunciar fala, sobretudo, do juízo iminente de Deus. Ainda que queira fugir de tal missão, o profeta não pode fazê-lo, porque ele foi penetrado pela mesma Palavra. Esta é a palavra do próprio Deus, que entrou no profeta como um fogo devorador, um “fogo ardente”, ao qual ele não pode “resistir”. Sua única saída é deixar que a Palavra de Deus flua através dos seus oráculos, ainda que isso implique incompreensão e perseguição.
No início do versículo 9, o profeta inclusive afirma que ele não quer mais “lembrar-se” da Palavra de Deus, não quer mais falar “em nome de Deus”. Contudo, ele simplesmente não pode fazer isso. Jeremias encarna o ideal do Deuteronômio: “esta Palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração” (Dt 30,14). Tal palavra, enviada de Deus ao profeta, queima em seu íntimo e precisa, agora, ser proclamada, a fim de que, como fogo devorador, purifique os seus ouvintes.
“Fogo devorador, fogo ardente!” É exatamente isso o que é a Palavra de Deus. Cada domingo, na liturgia, esse fogo ardente da Palavra nos penetra, nos purifica, nos preenche… O ambão é a nova sarça ardente, de onde o Cristo nos fala. Mas agora, o fogo não fica na sarça, pois ele incendeia a assembleia que, atenta e devotamente, escuta o Cristo que lhe fala. Esse fogo, todavia, não pode ficar contido em nós; por isso, ao final da celebração, somos enviados a incendiar o coração dos outros, com o mesmo fogo da Palavra que de Deus nós recebemos.
Jeremias, o profeta perseguido e sofredor, é uma imagem antecipada do Cristo. O Senhor anuncia, no trecho de Mateus que a liturgia hoje nos propõe, pela primeira vez, o mistério da sua paixão. Ele deve ir a Jerusalém sofrer muito da parte dos anciãos e será morto. Ainda que o sofrimento de Cristo seja todo ele orientado para a Páscoa, pois ele afirma que ressuscitará no terceiro dia (cf. Mt 16,21), seus discípulos parecem ficar estarrecidos diante desse mistério. De fato, aqueles que brigavam pelo primeiro lugar não poderiam entender como o Mestre esteja falando agora de dor, sofrimento e entrega (cf. Mt 20,20-28). Hoje também, em muitos ambientes cristãos, tais palavras não são compreendidas, pois o Senhor falar de lutas e sofrimento em vista da vida futura, enquanto muitos estão ainda presos a uma vida boa aqui neste mundo.
Do mesmo modo que Pedro tomou a Palavra para professar sua fé em nome dos doze (cf. Mt 16,16), ele também agora toma a frente, e parece manifestar a perplexidade de todos: Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça! (cf. Mt 16,22). Pobre Pedro! Ainda pensa como os homens, e não segundo Deus. O apóstolo, talvez, precisasse retomar o que diz o profeta Isaías: Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor (Is 55,8).
A resposta de Jesus é dura. A tradução do lecionário nem sempre nos ajuda. Melhor que “Vai para longe, Satanás” é a tradução “Vai para trás de mim, Satanás!” Mas, qual o sentido dessa frase? A expressão grega “opizo mou” (atrás de mim) aparece, também, em Mt 3,11; 4,19; 10,38; 16,24. Excetuando-se a passagem de Mt 3,11, todas as outras são contextualizadas dentro do chamado a seguir Jesus. O discípulo é aquele que “segue” o Mestre. Em Mateus, tal expressão vem indicada por expressões do tipo “seguir atrás de” ou “ir atrás de” Jesus. Quando Pedro expressa seu desejo de que Jesus não seja crucificado, ele está avançando, indo à frente. Em suma, Pedro está deixando de ser discípulo e está querendo tornar-se “pastor” de Jesus, indicando-lhe o caminho a seguir. Quando assim procede, Pedro torna-se um “escândalo” que, em grego, significa literalmente “algo que faz tropeçar”.
Pedro deve “ir para trás”, deve ser ovelha, deve deixar o Mestre trilhar o caminho da paixão e da cruz e deve aprender com Ele e trilhar o mesmo caminho, porque é esse, afinal, que conduzirá o Cristo e todos nós à ressurreição e à vida eterna.
Nos versículos seguintes (vv. 24-26), o Senhor deixa claro que o discípulo é aquele que está disposto a empreender o mesmo caminho que ele está perfazendo. “Salvar a vida” ou “perder a vida”? A vida verdadeira, para o cristão, é a vida eterna. Esta vida terrena é realidade penúltima e não última. Por isso, o cristão deve estar disposto a perder a sua vida nesse mundo, a fim de receber do Senhor a vida eterna, a vida verdadeira: eis o prêmio que o Filho do Homem dará a cada um quando vier na sua glória.
Os apóstolos, os mártires, os santos todos e tantos homens e mulheres, canonizados ou não, são fortes exemplos no seio de nossas comunidades de quem aceita livremente “perder a sua vida” por causa de Cristo. Na verdade, não estão perdendo nada. Estão emprenhando-se no caminho do anúncio do Evangelho. Deixando de pensar somente em si, pensam nos irmãos. Gastam seu tempo falando do Reino e tornando, por meio de suas ações, os homens mais conscientes de que o Reino que virá já está, em germe, presente no meio de nós.
Espelhemo-nos nessa multidão de testemunhas e aceitemos livremente dar nossa vida por causa de Cristo e do Evangelho. Deixemo-nos seduzir, como fez o profeta Jeremias. Ofereçamo-nos a Deus como sacrifício vivo, sacrifício de louvor, como nos exorta o apóstolo na segunda leitura. Aquele que ressuscitou dos mortos e que também nos ressuscitará, não nos deixará sem recompensa!