Jr 20,7-9
Sl 62 (63)
Rm 12,1-2
Mt 16,21-27
A minh’alma tem sede de vós como a terra sedenta, ó meu Deus!
A liturgia, bênção do Pai descida sobre nós[1] e louvor da assembleia ao Pai, pelo Filho, no Espírito[2], é o lugar onde saciamos nossa sede do Eterno. Celebrando a Eucaristia, nós nos unimos ao sacrifício único e redentor de Cristo e permitimos que se realize em nós o que nos diz hoje a segunda leitura.
São Paulo, nestes dois primeiros versículos do capítulo 12 da carta aos Romanos, exorta os cristãos a um “culto espiritual”. Este consiste em fazer da própria vida um “sacrifício vivo”. Mas como fazer da própria vida um “sacrifício vivo”? Penso que, antes de tudo, é necessário entender o que significa a palavra “sacrifício”. Oriundo do latim sacrum facere ou efficere, o termo “sacrifício” significa tornar algo sagrado ou separado. A nossa vida deve ser “separada” para Deus. São Paulo nos indica como fazer isso em Rm 12,2. Nossa vida se torna “sacrifício vivo” quando não nos “conformarmos” com o mundo, ou seja, quando não entramos na sua “forma de pensar”, mas deixamos que entre em nós a forma de “pensar e julgar” própria de Deus.
Esta “transformação” deve se dar não só em nível intelectual. A celebração cristã, lugar próprio do Espírito, é onde de maneira muito particular ocorre essa “transformação”. Deixando-nos atingir pela palavra e pelos sinais sacramentais vamos sendo “cristificados”, vamos sendo transformados n’Aquele que celebramos. A Eucaristia dominical se torna, então, momento privilegiado de deixar que esta palavra que hoje recebemos na segunda leitura e realize em nós.
O evangelho de hoje, coração dessa liturgia da Palavra, nos apresenta o anúncio que Jesus faz da sua paixão. Depois de perguntar aos discípulos quem Ele é para eles, e depois de receber a profissão de fé de Pedro, no evangelho que ouvimos no último domingo, encontramos hoje o Senhor anunciando aos seus o mistério da sua paixão. Poderíamos estruturar da seguinte forma a perícope evangélica desse domingo:
- 21: anúncio da Paixão
- 22: Incompreensão de Pedro
- 23: Exortação de Jesus a Pedro
- 24-26: Condições do discipulado
- 27: dito escatológico
O mesmo Pedro que confessa que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo, agora aqui não entende a messianidade de Jesus. Pedro ainda não compreendeu que tipo de Messias era Jesus. De fato, em tempos do Novo Testamento, variadas eram as expectativas a respeito de quem seria e de como atuaria o Messias. Por isso Pedro toma a frente do mestre e quer indicar a Jesus qual caminho Ele deve tomar: …Pedro tomou Jesus a parte e começou a repreendê-lo… (cf. v. 22). Jesus coloca, então, Pedro no seu lugar de discípulo. O dito severo de Jesus: “Vai para trás de mim, Pedro!” e não “Vai para longe” como encontramos em muitas traduções, mostra que Jesus quer fazer Pedro voltar ao seu lugar de ovelha: atrás do mestre. A expressão grega “opiso mou” ocorre cinco vezes em Mateus. Em Mt 4,19 temos o chamado dos primeiros discípulos: “Vinde após mim” e em Mt 10,38 a mesma expressão aparece no dito sobre a importância de renunciar tudo e “seguir atrás” do Cristo. Jesus não quer que Pedro se distancie, mas sim que se coloque no seu lugar de discípulo. O discípulo segue atrás do Mestre, vê ele fazer e aprende o quê e como fazer. Pedro será mestre, mas não de Jesus. De Jesus, Pedro será sempre ovelha. Por isso, ele deve “voltar para trás/seguir atrás” e aprender com o Mestre qual caminho trilhar.
No versículo seguinte (v. 24) Jesus vai apresentar quais são as condições exigidas para ser seu discípulo:
- Renunciar a si mesmo;
- Tomar a sua cruz;
- Segui-lo.
O discípulo deve estar disposto a colocar o ser discípulo acima dos seus projetos pessoais. Somente quem “renuncia/nega” a si mesmo pode ser discípulo. Somente quem está disposto a tomar a cruz, ou seja, somente quem está disponível para o martírio, pode ser verdadeiramente discípulo de Cristo.
Os vv. 25-26 trazem o dito a respeito do valor da vida e do que o homem pode dar em troca da sua vida. Quem quer ganhar a sua vida aqui nesse mundo, vai perdê-la. Quem oferece felicidade e realização nesse mundo não é Jesus, mas sim o diabo, como vemos nas passagens da tentação que encontramos nos três sinóticos. Jesus fala da necessidade de “perder a sua vida”, ou seja, de ter a coragem de renunciar ao que esse mundo pode oferecer a fim de abraçar o único necessário: Cristo e sua Palavra. Rudolf Pesch, comentando a passagem paralela no Evangelho de Marcos, afirma: …quem quer salvar a própria vida e a própria existência, a perderá no juízo final. Por que? Porque confia somente sem si mesmo e acredita ser a morte a última realidade escatológica; não compreende a própria vida como um dom do Criador, que pode conservá-la ou destruí-la, mesmo depois de transposto o limiar da morte (cf. Mt 10,28/Lc 12,4-5). Ao contrário, quem renuncia à própria vida, aceitando também a morte, a conservará no juízo final. Por que? Porque coloca a sua confiança totalmente em Deus, no Deus vivente (12,27). Aqui se entrevê a fé na ressurreição…[3]
O que motiva essa entrega apaixonada a Cristo e a capacidade de renunciar a si mesmo por causa d’Ele é a certeza da recompensa futura. Essa promessa vem expressa no v. 27, onde Cristo promete vir na “glória do Pai” para retribuir a cada um segundo duas obras.
Muitas vezes vivemos a tentação de Jeremias na primeira leitura. Diante das dificuldades no apostolado queremos fugir. Quando não somos aceitos ou acolhidos por causa de Cristo, queremos dizer como disse Jeremias: “…a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e chacota o dia inteiro” (cf. Jr 20,8). Todavia, ao mesmo tempo, por graça do Espírito, também surge em nós um “fogo ardente” e nós acabamos nos deixando “seduzir” novamente pelo Senhor (Cf. Jr 20,7).
Que a Eucaristia Dominical seja sempre para nós como que um clamor ao Pai, a fim de que nunca nos falte o fogo do Espírito, esse “fogo ardente” que, derretendo o gelo das decepções e do cansaço, nos abre de novo ao amor do Senhor a fim de que, mais uma vez, nos deixemos seduzir por ele.
[1] Cf. Ef 1
[2] Cf. Puebla 917
[3] Cf. Rudolf Pesch. Il Vangelo di Marco. Brescia: Paideia, pp. 103-104.