1ª Leitura: Gn 2,7-9;3,1-7
Sl 50
2ª Leitura: Rm 5,12-19
Evangelho: Mt 4,1-11
Existe um hino do Ofício Divino para a quaresma que diz assim: “Agora é tempo favorável, divino dom da Providência, para curar o mundo enfermo com um remédio, a penitência.” A quaresma é este tempo favorável em que Deus nos cura através de um remédio chamado penitência. A penitência cristã não deve ser entendida como castigo e, sim, como um remédio salutar. Remédio para nossas paixões, que turvam nossa mente e nos impedem de seguir livremente o Deus verdadeiro.
Nestes dias de quaresma nós queremos entrar no deserto com Cristo. A Palavra de Deus noz diz que o Espírito conduziu Jesus ao deserto para que ele fosse tentado pelo diabo (cf. Mt 4,1). A quaresma é uma imitação desse deserto de Cristo. É no deserto, “lugar sem palavra”[1], segundo a etimologia do termo em hebraico, ambiente onde a vida parece impossível, que nós vamos aprender a viver da Palavra de Deus. Jesus vence as seduções do demônio pelo poder da Palavra e inaugura para nós um método espiritual para vencermos o maligno e suas seduções. Trata-se de respondermos às investidas e insinuações diabólicas com a força da Palavra Divina.
Os maus pensamentos, as sugestões diabólicas, devem ser quebradas, assim que nascem, de encontro a Cristo, que é a “rocha” capaz de esmagar todas as investidas e seduções do mal.[2] A quaresma é o tempo de seguirmos este evangelho do primeiro domingo. É o momento de entrarmos no deserto. Ele é o lugar da provação, é a morada dos demônios, é o nosso campo de batalha, é onde vamos enfrentar as sugestões e seduções do mal alicerçados na Palavra de Deus.
O deserto, contudo, também é o lugar onde Deus se manifesta, onde os anjos nos servem (cf. Mt 4,11) e é o caminho para a Jerusalém verdadeira. É no deserto que o Cristo vence a sedução da vanglória, de abrir-se a uma glória desse mundo e de abandonar a glória do Pai. É no deserto que nós vamos sair vitoriosos, como Cristo, sobre o pensamento diabólico da vanglória, que é o mais sutil de todos os pensamentos diabólicos. Nós poderíamos condensar as três tentações de Cristo numa única tentação: a tentação da vanglória. A vanglória consiste em buscar a glória deste mundo; o elogio dos homens. O diabo busca fazer com que Cristo ceda diante desta tentação: ou transformando as pedras em pães só para mostrar o seu poder; ou se atirando do precipício para mostrar que é Filho de Deus; ou cedendo à idolatria para conseguir uma grande riqueza, da qual poderia vangloriar-se depois. No deserto nós nos confrontamos com os pensamentos diabólicos e os vamos desmascarando. No deserto aprendemos a lutar, sobretudo, com o pensamento da vanglória; aprendemos no deserto a buscar a verdadeira glória, a glória que Deus tem reservada para nós, mas isso nos será revelado no próximo domingo, com o evangelho da Transfiguração.[3]
Entramos no deserto com Cristo armados com a sua Palavra para vencermos as sugestões e as tentações do maligno. O pecado sempre se insinua aos homens em primeiro lugar no pensamento, como uma sugestão muito sutil. Vimos isso na primeira leitura. Foi assim que nossos primeiros pais pecaram. A serpente não os obriga ao pecado, mas os sugestiona, os faz pensar que contrariar a vontade de Deus seria melhor. Pela desobediência o homem atrai sobre si e sobre toda a humanidade o sofrimento e a morte.
A segunda leitura nos fala justamente sobre isso: “pela desobediência de um só homem toda a humanidade foi estabelecida numa situação de pecado”. Às vezes as pessoas nos perguntam sobre a origem do mal e da morte. Nos perguntam o porquê de tantos sofrimentos. Aqui está a resposta para nós. Estava nas mãos dos nossos primeiros pais no paraíso escolher a morte ou a vida; a obediência ou a desobediência. Deus, no seu infinito amor criou o homem com livre arbítrio podendo decidir entre o caminho da liberdade, escolhendo a Deus como seu Senhor, ou o caminho da escravidão, fazendo opção pelo pecado (cf. Sl 1). O homem semeou na carne, como diz Paulo na carta aos Gálatas, o homem escolheu o pecado, e por isso colheu a corrupção, colheu como fruto da sua escolha o sofrimento e a morte. A desobediência nos conduziu para a morte. Mas existe uma boa nova para nós. Se a desobediência de um só homem trouxe a todos a morte, a obediência de um só trouxe para todos a vida verdadeira, uma vida a qual nós não tínhamos direito, a vida que Deus tem reservada para nós.
Como entrar no caminho da vida? Entramos no caminho da vida obedecendo. Assim como Cristo nos abriu o caminho para a vida pela sua obediência, também nós receberemos a vida que Cristo conquistou para nós obedecendo. E obedecer significa ouvir. Obedecer vem do latim ob-audire. Precisamos ouvir a Deus. Como rezamos no Salmo 94: “Hoje se ouvirdes a voz de Deus, não endureçais os vossos corações.” Hoje a voz de Deus nos fala pela Palavra que ouvimos, não endureçamos os nossos corações. Ouçamos a voz de Deus que nos chama e sigamos o Cristo no seu deserto. Sejamos obedientes como Ele o foi e entremos confiantes de que venceremos as seduções do mal se estivermos firmados na Palavra de Deus. Sigamos a Cristo no seu deserto, para entrarmos também com Ele na Jerusalém Celeste. Mas, saibamos desde já que este é o caminho da cruz. A obediência de Cristo o conduziu até a cruz. Também lá nós chegaremos, nela subiremos, entraremos no mistério da morte, mas sairemos da morte para a vida, vitoriosos com Cristo.
[1] A palavra hebraica para deserto é midbar, um termo composto por um prefixo privativo mi e pelo termo dabar, que significa “palavra”.
[2] São Bento assim se expressa na sua Regra para os monges, no Prólogo: “quando o maligno diabo tenta persuadi-lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo”
[3] Os Padres do deserto comparavam as tentações de Jesus também a outros pecados. Alguns comparam a tentação de transformar as pedras em pães à tentação da gula. Demos aqui uma interpretação que nos parece adequada.