Sb 18,6-9
Sl 32
Hb 11,1-2.8-19
Lc 12,32-48
“Feliz o povo que o Senhor escolheu por sua herança!” (Sl 32)
Hoje a segunda leitura nos fala da fé. A fé nos é descrita no escrito aos Hebreus como: posse antecipada do que se espera e meio de demonstração das realidades que não se veem (cf. Hb 11,1). Existem três enganos a respeito da fé:
- Confundir a fé com sentimento ou, ainda pior, com sentimentalismo;
- Querer criar “a sua fé”: o perigoso demônio do subjetivismo – a FÉ algo que recebemos, daí a importância da Tradição;
- Achar que a fé “serve” somente para se alcançar os milagres e os prodígios econômicos que as pessoas costumam chamar de “vitória”: enriquecimento repentino, expulsões de demônios, curas instantâneas, conversões imediatas etc.
Por isso precisamos nos perguntar o que é a fé e, novamente voltamos ao texto de Hb 11,1: a fé é a posse antecipada do que se espera, a convicção acerca das realidades que não se vêem.
Se a fé é posse antecipada do que se espera ela está então ligada à esperança, e o que esperamos? A vida eterna. Por isso, a fé cristã é fé na vida eterna, é fé em Cristo e, consequentemente, adesão ao seu projeto salvífico, porque, segundo São Tiago, a fé sem obras é morta. O centro da nossa fé é Cristo morto e ressuscitado. Se não houver isso não é fé. A nossa fé é FÉ PASCAL.
A fé também é meio de se demonstrar o invisível. O mundo invisível é o mundo espiritual. A fé é como um farol que ajuda o capitão do navio a perceber que existe algo que ele não vê lá na frente. Assim também a fé é o farol que nos aponta para o que é invisível e que nos espera.
Por isso a fé é tão essencial e, sem ela, é impossível viver a vida cristã de maneira autêntica. Se eu creio já possuir, pela fé, a vida eterna, o que pode me aterrorizar (cf. Rm 8,31-39)? Se eu creio no invisível a minha vida então mudará, porque ela será guiada não pelo que vejo, mas por aquilo o que eu espero, o que está à minha frente.
O autor do escrito aos Hebreus segue nesse capítulo 11 discorrendo a respeito da fé exemplar dos antigos. Fala de Abel, de Henoc, de Noé, de Abraão, mas chama-nos a atenção Hb 11,6 – omitido na perícope que hoje lemos – onde o autor sagrado fala que, “sem a fé, é impossível agradar a Deus”. Muito interessante essa afirmação do autor sagrado. Ele não diz tudo o que agrada a Deus, mas ele diz que sem uma coisa é impossível agradar a Deus, por mais que o homem faça bem todas as coisas: sem a fé. E todo aquele que se aproxima de Deus deve: 1. Crer que Ele existe; 2. Que recompensa os que o procuram. Que recompensa é essa, senão o aumento da própria fé?
Na sua Carta Apostólica Porta Fidei o Papa Emérito Bento XVI nos recordou em palavras simples, mas ao mesmo tempo comoventes, que a descoberta e o crescimento na fé é um processo que dura toda a nossa existência: “A PORTA DA FÉ (cf. At 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria glória quantos creem n’Ele (cf. Jo 17, 22).” (cf. PF n.1)
O Evangelho deste domingo está estreitamente relacionado com o que ouvimos no domingo anterior, que também tinha como tema o bom uso dos bens deste mundo. Os primeiros versículos desta perícope, ou seja, os vv. 32-34 são parte de um conjunto maior, mais precisamente da perícope de Lc 12,22-34. Todavia, depois de dar uma ordem em sentido positivo aos seus discípulos no v. 31 (Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus…), Jesus apresenta no v. 32 uma ordem negativa: Não tenhais medo… O centro de tudo ainda é o Reino de Deus, porque se no v. 31 tratava-se de buscar em primeiro lugar este “reino” agora trata-se aqui de não temer porque o Pai deseja dar este “reino” aos discípulos, que são delicadamente chamados por Jesus de “pequeno rebanho”. Depois de, no v.33, indicar uma atitude concreta a tomar – vender os bens e dar esmola – Jesus apresenta no v.34 uma máxima basilar que serve para nos libertar de todo apego aos bens deste mundo e que, mais ainda, nos mostra que o nosso coração estará onde estiver nosso apego: “Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Se o nosso tesouro é deste mundo, nosso coração está fatalmente preso a esta realidade caduca e que caminha para o fim. Todavia, se nosso tesouro está em Deus e se Deus mesmo é nosso tesouro, então nosso coração se encaminha para a eternidade.
O restante da perícope evangélica de hoje pode ser dividida em duas partes (vv. 35-40 e vv. 41-48).[1] Tanto numa, quanto noutra parte, sobressai o tema da vigilância (cf. vv. 37.38.45) que está intrinsecamente ligado com o tema da parusia, ou seja, da volta repentina e inesperada do Senhor.
A vida cristã deve ser uma vida de vigilância. Não sabemos quando o Senhor voltará e, também, quando seremos chamados a ir até Ele. Por isso, toda a nossa vida deve ser conduzida numa “tensão escatológica”, ou seja, numa perspectiva que vai além deste mundo. Devemos viver como quem deve dar contas hoje ao Senhor dos dons que d’Ele recebeu. Neste sentido, o Evangelho se conecta com a primeira leitura, que elogia a salvação que os nossos pais na fé esperaram e receberam: “Ela (a noite da libertação) foi esperada por teu povo, como salvação para os justos e como perdição para os inimigos.” (cf. Sb 18,7)
O Evangelho é ainda, no seu encerramento, um convite a percebermos que quanto mais recebemos de Deus mais devemos também lhe prestar contas. Às vezes a tentação do sucesso, da riqueza, da vida fácil, pode nos levar a conduzir de maneira indevida as coisas de Deus. Mas nós que conhecemos a sua vontade e, sobretudo os que recebemos algum encargo na Igreja do Senhor em virtude de algum dom que possuímos, devemos levar a sério o “ser fiéis” à vontade de Deus, ainda que isto nos custe sacrifício. Somos chamados a servir o Senhor na sua Igreja e não a nos servir da Igreja do Senhor.
[1] Cf. BOVON, F. El Evangelio Según San Lucas. V. II. Salamanca: Ediciones Sígueme. 2002. p. 392.