Jr 23,1-6
Sl 22(23)
Ef 2,13-18
Mc 6,30-34
Jesus teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor
A liturgia da Palavra deste domingo nos coloca diante do mistério da misericórdia de Deus, que quer vir ao encontro do homem e conduzi-lo pelo caminho da salvação. Deus deseja pastorear e conduzir o homem.
Desde o início da história da salvação, Deus manifestou seu desejo de fazer aliança com os homens e, de fato, fez essa aliança. Deus colocou à frente do seu povo pastores que deveriam conduzi-los na fidelidade a esta mesma aliança. Esses pastores deveriam ser o sacramento, o sinal visível de Deus que jamais abandona seu povo, mas que o pastoreia, o conduz pelas estradas da vida rumo à salvação. Contudo, nem sempre esses pastores corresponderam ao chamado que haviam recebido do próprio Deus.
Na primeira leitura, temos um oráculo de juízo contra os maus pastores que vem acompanhado de uma promessa de salvação. O oráculo começa com um “Ai” contra os pastores que deixaram o povo de Deus se dispersar. O profeta anuncia uma “visita” de Deus a esses pastores. Essa “visita” de Deus será para castigá-los por suas más ações, pois afinal eles “dispersaram”, “afugentaram” e “não cuidaram” do rebanho que lhes fora confiado.
Deus, contudo, não somente condena os maus pastores. Ele promete, também, reunir as ovelhas dispersas. Um tempo novo é anunciado, onde as ovelhas “não sofrerão mais medo e angústia” e não mais “se perderão”. Deus promete suscitar “novos pastores” que as apascentem de verdade, a fim de que elas não se percam mais por falsos caminhos.
Ponto culminante deste texto são os versículos 5-6. O oráculo de Jeremias ganha um tom messiânico quando o profeta anuncia a vinda de um “germe justo”: “erguerei para Davi um germe justo” (cf. Jr 23,5). Esse “germe justo”, esse “descendente de Davi”, “reinará como rei”, agirá com inteligência e vai fazer com que reine na terra a “justiça” e a “retidão”. Esses dois termos “justiça e retidão”, ou “justiça e direito”, são muito importantes na teologia do AT. Um rei que estabeleça a justiça e a retidão é um rei segundo o coração de Deus, que conduz o povo a viver de acordo com a vontade Deus, ou seja, na obediência aos seus mandamentos. Esse “germe justo” trará salvação e segurança para o povo e seu nome será “Senhor, nossa justiça”. Nesse rei novo, nesse Messias davídico, as promessas de Deus para o seu povo se realizarão. O povo poderá viverá em paz, como é a vontade do Senhor.
Israel viveu conduzido por pastores humanos, que nem sempre foram bons pastores. Deus, contudo, jamais deixou de ser, Ele mesmo, um pastor fiel para o seu povo. É o que vem expresso no Salmo 22(23): O Senhor é o pastor que me conduz. Diante da falência dos pastores humanos e da expectativa de que aparecesse o “germe justo”, o Salvador/Messias anunciado pelos profetas, Israel sempre soube que podia contar com o pastoreio de Deus. Se os pastores humanos falham, Deus jamais falha, Deus jamais abandona as ovelhas do seu rebanho.
A máxima expressão desse pastoreio divino se deu em Jesus. No evangelho de hoje, vemos o Senhor que deseja se retirar com seus apóstolos para um lugar deserto, a fim de que eles possam descansar um pouco de suas atividades. Marcos acentua que eles “mal tinham tempo de comer” (v. 31). Os apóstolos, então, se retiram com Jesus para um lugar afastado, um lugar deserto. A multidão, contudo, tem fome e sede do que Jesus pode lhes oferecer. Eles saem e vão ao encontro do Mestre. Quando desembarcam, Jesus vê a numerosa multidão que conseguiu chegar lá antes dele e de seus apóstolos. Ele, então, se move de “compaixão”, porque eles eram “como ovelhas sem pastor”. O Mestre, então, começa a ensinar-lhes muitas coisas.
O verbo utilizado por Marcos para descrever a “misericórdia/compaixão” de Jesus por aquela multidão de ovelhas “sem pastor” é o verbo splanknidzomai. Esse verbo aparece 12 vezes no NT, sempre nos evangelhos sinóticos. Quatro vezes aparece nas passagens paralelas de Mt 14,14 e Mc 6,34; Mt 15,32 e Mc 8,2. Três vezes é utilizado em parábolas. Mateus o utiliza em 18,27 na parábola do servo que devia muito a seu patrão e que foi generosamente perdoado por ele, que se moveu de “compaixão”. Em Lucas, esse verbo aparece em 10,33 na parábola do bom samaritano e em 15,20 na parábola dos dois filhos (também conhecida como “parábola do filho pródigo”). Duas vezes aparece no contato que Jesus tem com os enfermos: os cegos de Jericó, em Mt 20,34 e o leproso de Mc 1,41. Uma vez aparece na cena da ressurreição do filho da viúva de Naim: Lc 7,13. Em Mc 9,22 ele aparece na súplica de um pai que pede a Jesus a libertação de seu filho possesso. Ainda uma vez, o verbo aparece em Mt 9,36, onde Jesus vê a multidão e dela tem compaixão, porque era como um rebanho de “ovelhas sem pastores”.
Este verbo nos remete ao termo hebraico rahamîn, utilizado no AT para expressar aquela compaixão que é própria de Deus. O termo rahamîn deriva de rehem, que significa “as entranhas maternas”, assim como o verbo splanknidzomai deriva de splanka, que significa “entranhas”. Deus é aquele que tem “entranhas de misericórdia” (Sl 25[24],6). Essas mesmas “entranhas de misericórdia” as possui o Cristo, aquele que, movido por amor, veio do seio do Pai e se fez carne para a nossa salvação.
O que suscita a compaixão de Jesus é a visão do povo que se encontra como um grupo de “ovelhas sem pastor” (1Rs 22,17). Ao começar a ensinar as multidões Jesus se revela como o pastor verdadeiro, como o pastor misericordioso que não quer que o povo pereça pela falta de conhecimento (cf. Os 4,6). Conforme afirma Gnilka, “a observação feita por Marcos de que Jesus começa a ensinar ao povo nos indica a partir de que ponto devemos ver sua atividade de pastor. O milagre que vem em seguida (vv. 35-44) é situado em uma perspectiva determinada e se subordina ao milagre do ensinamento e se inclui nele.”[1]
A misericórdia de Jesus o leva a “ensinar” o povo muitas coisas. Também hoje o Senhor se faz nosso pastor e nos deseja ensinar muitas coisas. Através daqueles que Ele mesmo constitui como pastores do seu rebanho Ele deseja nos conduzir, nos guiar, nos pastorear, e faz isso ensinando-nos o caminho pelo qual devemos seguir. Cada um deve perceber, contudo, como responde a essa atitude de misericórdia da parte do Senhor. Ele, no seu amor, nos ensina muitas coisas, para que não sejamos ovelhas sem pastor. Mas será que nós ouvimos os pastores? Nos deixamos conduzir por eles? Ou somente damos ouvidos a nós mesmos ou ao que nos agrada? Somos “obedientes” ou “seletivos” no modo como ouvimos? Também os que pastoreiam devem se questionar: o meu pastoreio é um reflexo da ação do Divino Pastor, que jamais abandona seu povo?
Diante da Palavra que hoje ouvimos, peçamos ao Senhor que nos ajude a ser ovelhas dóceis ao seu pastoreio. E, se exercemos na Igreja a função de pastores, seja em que nível for, peçamos que ele faça de nós um reflexo da sua bondade, Ele que é o “bom pastor”, que dá a sua vida pelas ovelhas (cf. Jo 10).
[1] Gnilka. El Evangelio Segun San Marcos. Volume I. p. 302.