1ª Leitura: Gn 3,9-15
Sl 129 (130)
2ª Leitura: 2Cor 4,13 – 5,1
Evangelho: Mc 3,20-35
No Senhor, toda graça e redenção (Sl 129,7)
Depois de concluído o Tempo Pascal, celebrado como se fosse um “Grande Domingo”, expressão esta oriunda de Santo Atanásio[1], um “único dia de festa”[2], retomamos o assim chamado “Tempo Comum”, ou “Tempo durante o Ano”, onde, na sucessão dos Domingos, nossa Páscoa Semanal, somos chamados a penetrar paulatinamente, através da escuta da Palavra e da comunhão nos Mistérios, na própria vida do Ressuscitado, que do altar se comunica a todos os crentes.
O capítulo 3 do Gênesis, cujos vv. 9-15 ouvimos na primeira leitura, nos traz o relato da queda de nossos primeiros pais no jardim. Alguns autores[3] fazem notar que o diálogo entre a mulher e a serpente contém uma significativa deturpação da Palavra original do Criador. Em Gn 2,16-17 a Escritura diz: “E Deus deu ao homem este mandamento: ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comerdes terás que morrer’.” A serpente modifica com uma pequena partícula, apenas um lô, um não na língua hebraica, a palavra original de Deus, mas deturpando-lhe totalmente o sentido: “Ela (a serpente) disse à mulher: ‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?’” Nós vv. 2 e 3 a mulher tenta voltar à Palavra original de Deus, mas também a deturpa, acrescentando um “nele não tocareis”, que não existia no texto de Gn 2,16-17: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. (cf. Gn 3,2b-3)
A primeira atitude do homem após o pecado é fugir de Deus. A criação, expressão do amor do Criador por ele, lhe serve agora como um instrumento de fuga das vistas do mesmo Criador. Um caos se instaura, onde Deus havia criado a ordem, o cosmos. Não mais um caos externo, mais um caos no interior do homem, que quer se afastar do seu Criador. Mas o Criador não abandonará o homem. Não só ele “caminhará” com o seu povo, como antes “caminhava com Adão no jardim”, mas já aqui, neste texto, uma resposta é oferecida ao homem em tom de promessa: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (cf. Gn 3,15). Os Padres da Igreja viram neste texto o “proto-evangelho”, o “primeiro anúncio” messiânica, onde Deus promete que um descendente de Eva virá destruir e esmagar o poder de Satanás. Diante dessa promessa de salvação todos podem cantar com o salmista “No Senhor toda graça e redenção!”
Essa “resposta de Deus” prometida na primeira leitura nos veio em Jesus. Olhamos agora para o Evangelho, que está no centro da liturgia da Palavra, nos ajudando a interpretar as outras leituras. Na primeira leitura nos é feita uma promessa de redenção, de alguém que virá para “esmagar” a cabeça da serpente, de Satanás. No Evangelho esta promessa aparece realizada, pois a descendência da mulher, da Nova Eva que é Maria, veio e está esmagando definitivamente o poder de Satanás, por meio da pregação da Palavra, dos milagres e da sua força que “expulsa os demônios”.
O primeiro ensinamento de Jesus nesta passagem é que o um reino dividido não pode subsistir. Esse ensinamento brota de uma forte acusação da parte dos mestres da Lei: a de que Jesus estaria expulsando o demônio por meio de Belzebu. Tal acusação poderia leva-lo à pena de morte. O leitor de Marcos pode perceber que tal acusação não procede, porque já em 1,24 os próprios demônios afirmam não ter nada a ver com Jesus de Nazaré.
Jesus responde em parábolas, como acentua Marcos. Os vv. 23-26 são abertos com uma pergunta retórica: “Como é que Satanás pode expulsar a Satanás?” E aí Jesus se utiliza de duas imagens: a do reino e a da família. Se um reino ou uma família estão divididos contra si mesmos, eles não poderão sobreviver de modo algum. Assim também, se Satanás se divide contra si mesmo, ele será destruído. De fato Satanás será destruído, mas não por si mesmo e, sim, por uma força advinda de fora, pela intervenção do próprio Deus, “que lhe esmagará a cabeça”. É nesse sentido que os autores entendem o v. 27, onde Jesus fala a respeito do “homem forte”. Segundo alguns comentadores, Jesus se compara aqui a um “ladrão”, que entra na casa do “homem forte”, de Satanás, e a saqueia, ou seja, traz para fora aqueles que ele esperava aprisionar na morte.
Nos vv. 28-30 emerge um outro tema: “o pecado contra o Espírito Santo”. Chama a atenção do leitor que aqui parece que há um limite para a misericórdia de Deus: o pecado contra o Espírito Santo não encontrará perdão. Qual o sentido dessa afirmação? No contexto da passagem os mestres da Lei querem colocar do lado de Satanás justamente aquele que veio para destruir o poder de Satanás. Sendo assim, que outra alternativa resta? Se o único capaz de dar o perdão, a salvação, é reputado como um condenador, então não há mais salvação possível. É nesse sentido que o Catecismo diz no n. 1864: “A misericórdia de Deus não tem limites, mas quem se recusa deliberadamente a acolher a misericórdia de Deus pelo arrependimento rejeita o perdão de seus pecados e a salvação oferecida pelo Espírito Santo. Semelhante endurecimento pode levar à impenitência final e à perdição eterna.”
Peçamos ao Senhor a graça de um coração sempre aberto ao seu anúncio salvífico. Diante dos dramas de nossa existência, não desanimemos jamais, mas confiemo-nos à misericórdia do Senhor, sabendo que, como afirma o salmista, nele se encontra toda graça e redenção (cf. Sl 129,7).
[1] Cf. PG 26,1366: “magnam Dominicam celebrabimus”.
[2] Cf. Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 22.
[3] Cf. GIUNTOLI, Frederico. Genesi 1-11. San Paolo. pp. 100-101.